«(…) De velas com a cruz de Cristo já desfraldadas, as naus começaram a afastar-se dos pontões, lentamente, uma de cada vez, alinhadas em direcção à foz do estuário, coberta no horizonte por uma espessa neblina de veludo. E só mesmo quando o último navio se perdeu na linha do oceano a população dispersou do cais. A festa tinha acabado. Lisboa regressava à triste normalidade do seu quotidiano. Inversamente, para a maioria dos marinheiros, sobretudo para os membros da comitiva real, principiava uma aventura emocionante. Em certo sentido, a mais emocionante aventura das suas vidas. Mas antes ainda de as naus mergulharem as quilhas no mar alto, foram todos aos castelos de proa para ver a cidade distante, sobretudo o Cais da Ribeira, transformado já então num ponto ínfimo e obscuro. Era lá o centro cosmopolítico da urbe. Era nele e ao redor dele que se encontravam as casas do poder secular, da riqueza e da justiça: a Casa da Índia, a velha e a nova; a Casa da Suplicação; os Paços da Mina, de Xabregas e de Santos; os armazéns e a alfândega; as casas de mercadores de sobrado; a igreja da Misericórdia; os campos de carreira de fidalgos e dos jogos de péla. Era lá também que se situavam o chafariz d’el-rei, o Cais da Pedra e o Pelourinho, onde por vezes se realizavam e quase sempre se cumpriam os autos-de-fé. Nesse dia, o primeiro de muitas semanas, mareantes e membros da comitiva passaram quase todo o tempo em oração e recolhimento, salvo os mestres-pilotos e os marinheiros cuja tarefa consistia em assegurar o serviço à navegação. E também os grumetes, na maioria adolescentes, destinados à execução dos trabalhos mais pesados. Eram estes, de resto, que limpavam os excrementos dos homens e animais e, nas longas viagens, serviam de objecto de prazer aos tripulantes. Mas dado o carácter sacratíssimo de tão importante empresa marítima, ainda por cima de curta duração, foi desde logo determinado, por exigência do chefe da embaixada, que os pobres grumetes não seriam dessa vez utilizados para outros fins que não os do exclusivo serviço de asseio dos navios. E mais ficou estabelecido: todo o marinheiro que cometesse ou tentasse cometer o pecado da carne contra a natureza seria punido no regresso a Portugal.
Porque no entendimento do chefe
da comitiva não era justo nem cristãmente aconselhável que as naus fossem
carregadas de animais estranhos e de outros presentes benzidos pelo arcebispo
de Lisboa, para oferta a Sua Santidade, e os homens se entregassem no mesmo
espaço físico ao consolo do vício. Acima de tudo, Tristão Cunha tinha medo que,
naquelas circunstâncias específicas, Deus se arreliasse com algum desvirtuoso
marinheiro e, por vingança, fizesse pagar a todos uma pesada pena pela maldade
de um só. Sobre o assunto, o comandante da esquadra ainda tentou dissuadir o embaixador
da decisão, alegando, antes ainda do embarque, numa conversa em terra a que
assistiu Diogo Pacheco, que os grumetes não costumavam reagir mal à vontade
rude e arbitrária dos marinheiros. E acrescentou, para reforço da sua
argumentação, que os rapazes, salvo os mais novos, os mais frágeis, sobretudo
os impúberes, aceitavam o desígnio com bondade. Mas isso é pecado; isso atenta
contra a origem do homem feito à imagem de Cristo. Mas é também um hábito que
vem de longe, garantiu o oficial.
Com paciência, o embaixador
explicou que aquela viagem seria diferente das demais. Eles não iam à
descoberta de novas terras, nem sequer pregar na lonjura do mundo a fé de
Cristo ressuscitado; iam sim na graça de Deus, protegidos por Deus, levar ao
sapientíssimo Papa ricos presentes do venturoso rei português. E se os rapazes
se derem aos marinheiros, às escondidas?, insistiu o capitão. Às escondidas!?,
admirou-se Tristão Cunha, de cenho carregado. Os pecados não se escondem,
atalhou Diogo Pacheco, que até aí havia assistido em silêncio ao diálogo. Deus
vê tudo. Mesmo se os pecados forem cometidos pela calada da noite?, perguntou o
capitão. Mesmo pela calada da noite e às ocultas, respondeu o chefe da comitiva,
agastado com a perserverança do homem. E depois com veemência: Ele está em toda
a parte». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor,
2008, ISBN 978-989-555-364-8.
Cortesia de OdoLivroE/JDACT
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