Infanta D. Maria, filha de D. Manuel I
(1521-1557)
Lisboa
Cortesia de purl
Com a devida vénia a António de Oliveira (t. 27, RPH, 1992, p. 215-220) e ao seu brilhante trabalho A Infanta D. Maria e o «senhorio» de VISEU: Uma precisão cronológica, publico algumas palavras.
Como introdução, faço referência a panegírico. Um panegírico é uma palavra derivada do grego, cujo sentido geral é o de um discurso, em prosa ou verso, em louvor de uma pessoa, de um acontecimento, ou de um lugar ou objecto. A função do panegírico foi sempre política. Toda a ênfase do panegírico recaía sobre os valores que estavam supostamente na base da prática governativa ou no «modo-de-estar» da pessoa em causa. A ideia era conferir um sentido de legitimidade e segurança ao detentor do poder estabelecido, de um modo que o persuadisse a tornar-se melhor governante. Por isso, João de Barros, um dos mais importantes panegiristas portugueses, sugeria que a eloquência laudativa se dirigia em geral aos homens que não mereciam louvor.
Inicio o trabalho de António de Oliveira.
1. O Panegírico da Infanta D. Maria, de João de Barros, é uma das obras que bem merecia ser revisitada pelos cultores da história da Mulher. Ao mesmo tempo, no enquadramento do sexto centenário do nascimento dos infantes D. Pedro e D. Henrique, pelos que estudam o humanismo.
Com efeito, é nestes infantes e, sobretudo, em o Magnânimo Afonso V de Aragão e Nápoles, cunhado do rei D. Duarte, que João de Barros entronca uma das linhas ascendentes da infanta D. Maria, a qual, «não havendo respeito à sua criação», se submeteu a decorar «aqueles primeiros e enfadonhos rudimentos da gramática, que a força da palmatória aos outros engenhos ensina». Aprendizagem que lhe proporcionou «inteiro conhecimento da língua latina» e lhe permitiu tornar-se uma das mulheres mais cultas do seu tempo.
Cortesia de arqnet
Sabedoria, repisa João de Barros, «ganhada por sua indústria e trabalho» (1). Sapiência que lhe permitiria, uma vez senhora de vassalos, exercer o melhor dos governos, o domínio do sábio, realizando uma das utopias do primeiro duque de Coimbra (2), mártir, no entanto, em Alfarrobeira, do poder das Casas e do emergente poder do moderno estado do rei.2. O Panegírico da Infanta D. Maria, impresso pela primeira vez, como se sabe, em 1655, não está explicitamente datado (3). Em 1962, porém, Alexandre de Lucena e Vale, ao indagar os titulares do senhorio de Viseu, deparou com a data da sua elaboração, paralela à doação de Viseu à infanta D. Maria (4).
Lucena e Vale
Cortesia de viseu
E poucos anos depois, partindo do conhecimento que tinha da história local, extraiu do referido Panegírico a confissão da naturalidade de João de Barros (5). Até então, a cidade de Viseu era dada «como possível e até provável» (A. Baião) para berço de João de Barros. A partir da leitura de Lucena e Vale, a probabilidade virou certeza. Certeza reforçada em virtude de todos os indícios e de Torres Vedras nunca ter reclamado para si a pátria do autor das Décadas da Ásia.3. Lucena e Vale colocou em 1544 a redacção do Panegírico da Infanta D. Maria (6). A data foi extraída de um dos borrões prévios à elaboração da minuta do contrato entre D. João III e a irmã, cumprindo-se assim uma das cláusulas do casamento de D. Manuel com D. Leonor, infanta de Castela e mãe de D. Maria (7). O contrato do último casamento de D. Manuel estipulava, com efeito, entre outras convenções, que a filha maior, no caso de não haver filho varão, receberia, a partir dos 16 anos de idade, 400.000 dobras castelhanas, pagas nos primeiros quatro anos (8). Este quantitativo estava avaliado, em 1544, em cinco contos de réis de renda anual. Para satisfazer parte desta importância, D. João III doou à irmã a cidade de Viseu e a vila de Torres Vedras «com todos os seus termos e limites e com todas as suas rendas». Ao mesmo tempo, a infanta ficou senhora da «jurisdição cível e crime mero e místico império» (com a natural ressalva de correição e alçada) e dadas dos ofícios, para além de outras particularidades, como certos padroados régios e o poder chamar-se senhora das referidas terras (9).
Cortesia de livrariasantiago
A «minuta» localizada por Lucena e Vale, bem identificada entre as actuais quatro espécies documentais contidas na Gaveta XVII, m. 5, doc. 20, dos AN/TT, menciona o ano de 1544. Não foi nesta data, porém, que formalmente se realizou o contrato, o qual se encontra registado na Chancelaria de D. João III, liv. 25, fls. 25-27 v., e datado de Évora aos 26 de Janeiro de 1545, notação cronológica já existente na minuta final (ou cópia do contrato) conservada nos AN/TT, Gaveta XVII, m.5, doc. 21. É esta, então, a data a partir da qual a infanta D. Maria se passou a chamar senhora de Viseu e de Torres Vedras (10). É esta data, também, que deve servir de referência para a redacção do Panegírico da Infanta D. Maria, obra de um seu admirador e vassalo por ter nascido num dos seus senhorios, embora se tenha de ter presente que, em 15 de Setembro de 1544, o infante D. Luís é nomeado curador da infanta, acto certamente propiciatório da celebração formal do futuro contrato de 1545. Data, em todo caso, que merece ser fixada por Viseu e, certamente, por Torres Vedras.4. O diploma registado na chancelaria (11), para além de alguns aspectos que aproveitámos no ponto n.° 3, contém na margem diversas anotações oficiais. Por elas ficamos a saber, por exemplo, o modo como a infanta D. Maria obtinha dinheiro antecipado, vendendo juro sobre os cinco contos de renda e quais os compradores. Juro vendido, acentue-se, sobretudo no momento em que se tornou herdeira da riqueza da mãe em França e, quem sabe, precisamente para litigar tão grande e complicada herança (12).
Cortesia de leiloes
Entre Agosto de 1556 e Junho de 1577, com efeito, a infanta D. Maria vendeu por quatro vezes quantitativos que somaram um conto e meio. Próxima do fim da vida, portanto, a infanta tinha reduzido os seus proventos em Portugal, assentados em Viseu, Torres Vedras e diversas instituições, em cerca de um terço (13). Havia antecipadamente recebido, porém, um quantitativo próximo dos dois contos e 400.000 réis, calculados ao preço a que foi vendido o juro em 1577, a 16 mil o milheiro, isto é, a 6,25% ao ano.Um forma comum, de resto, da nobreza obter dinheiro, para além dos censos. Mas entre os compradores há gente de Dom, sendo certamente alguns deles da própria casa da infanta (14). In António de Oliveira, t. 27, 1992, p. 215-220.
Anotações:
(1) João de Barros, Panegíricos, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1943, 2.ª ed., pp. 179-181 e 190-195. Explicita, por sua vez, Frei Miguel Pacheco: "Tengo en mi poder cartas originales, todas de su letra, en estremo bien formada, y distinta, y sobre esso, con las divisiones, puntos, y comas en las clausulas, que pudiera poner la mano mas diestra en aquella facultad. En la paran comuumente las personas de su Estado, que teniendo por inescusable saber leer, y escrivir jugzan por escusado el passar mas adelante". (Fr. Miguel
Pacheco, Vida de la serenissima infanta Dona Maria [. . . ] , Lisboa, 1675, fl. 88). Mas estava já em curso "a fusão social da cultura e da nobreza no quadro único de um Estado forte e de uma sociedade hierárquica". (José Sebastião da Silva Dias,A política cultural da época de D. João III, vol. I, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1969, p. 738). Para uma bibliografia (não completa) sobre a infanta D. Maria, vide Isaltina das Dores Figueiredo Martins, Bibliografia do Humanismo em Portugal no Século XVI. Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanistas, 1986.
(2) Francisco Elias de Tejada, Ideologia e utopia no "Livro da Virtuosa Benfeitoria", "Revista Portuguesa de Filosofia", III (fasc. I), 1947, pp. 5-19. Os panegíricos quinhentistas retomam o tema dos reis-filósofos, fazendo nascer "um estilo político-literário", iniciado por Erasmo em 1504: "Erasme affirmera qu'aucune
méthode n'est plus efficace pour corriger les princes, que celle qui consiste à leur présenter un modèle idéal sous forme d'éloge". (J. Poujol, 1515. Cadre idéologique du développement de l'absolutisme en France à l'avénement de François 1er", in "Théorie et pratique politiques à la Renaissance", XVII Colloque International de Tours, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1977, p. 265).
(3) Manuel Severim de Faria, Notícias de Portugal, Lisboa, Oficina Craesbeckiana, 1655. pp. 306-342. Título por extenso: "Panegirico a mui alta, e esclarecida princesa infanta dona Maria nossa Senhora". Quanto a este texto, MSF, em "Aos Leitores", informa: "Foi composição do nosso grande João de Barros; o qual como seu pay era morador de Viseu, celebrou com este Panegyrico a boa sorte daquella cidade, quando el
Rey D. João a deu á Senhora Infanta com título de Duquesa delia". MSF tinha já, assim, na primeira metade do século XVII, proposto uma naturalidade para João de Barros e uma autoria e cronologia para o Panegírico, embora a infanta não tivesse sido duquesa de Viseu. Do panegírico impresso existe uma cópia nos AN/TT, assinalada por Maria do Rosário Themudo Barata de Azevedo Cruz,As regências na menoridade de D. Sebastião. Elementos para uma história estrutural, vol. I, Lisboa, INCM, 1993, p. 275. A autora, porém, atribuiu o panegírico a Frei Francisco Barreiros, o sobrinho de João de Barros, de nome Gaspar Barreiros antes de se tornar franciscano. (AN/TT, Colecção S. Vicente, tomo XV, título I, fls. 86-94, na actual numeração e arranjo da miscelânea). O rápido confronto que fiz do texto impresso com o texto manuscrito, socorrendo-me apenas da memória, leva-me a concluir tratar-se do mesmo padrão, embora seja necessário verificar as possíveis variantes. Atente-se, porém, que o título do panegírico impresso contém um aposto a D. Maria que não se encontra no ms., cujo enunciado é o seguinte: "Panegirico. a mui alta & excellente princesa a iff.te dona Maria". Nada na miscelânea, no estado actual, permite mecanicamente concluir pela autoria. Na miscelânea há textos de diversos autores, para além dos de Frei Francisco Barreiros (Livro da verdadeyra nobreza, Geografia da antiga lusitania, etc.), de Manuel Severim
de Faria e outros. Podemos bem estar em presença de um dos vols. ms. pertencentes a MSF, referidos nas Notícias de Portugal, ou ao próprio Manuel Azevedo de Barros, sobrinho de Gaspar Barreiros, indicado já por MSF. De qualquer modo, o autor do panegírico deve ser um leigo e não um frade franciscano e muito menos jesuíta. Compete à Professora Maria do Rosário Themudo elucidar melhor o seu ponto de vista. Mantenho, por tudo isto, a autoria que tem sido seguida. Para além do panegírico da infanta D. Maria, João de Barros é autor, como é do conhecimento geral, do panegírico de D. João III. Outro elogio do referido monarca deve-se a António de Castilho, obra igualmente publicada por MSF nas Notícias.
(4) Alexandre de Lucena e Vale, "Príncipes, titulares do senhorio de Viseu", Anais da Academia Portuguesa da História, II série, vol. 12, Lisboa, pp. 167-197. Múltiplos autores haviam anteriormente reivindicado, mas com menos evidência, a naturalidade visiense. (Cf. António de Oliveira, A mundividência heróica de João de Barros, Coimbra, 1959, diss. de l i c , d a c . p . 8).
(5) Como mostrou no seu trabalho No quarto centenário de João de Barros. Da verdadeira interpretação do "Panegírico da Infanta " à naturalidade visiense do grande historiador, Viseu, Junta Distrital de Viseu, 1970.
(6) "Podemos desde já haver por assente que o senhorio de Viseu foi, por D. João III, dado à Infanta D. Maria nesse mesmo ano de 1544, e assim que é este o ano da redacção do panegírico de João de Barros". (P. 104 do trab. cit. na nota n.°4).
(7) A "minuta" publicada por Lucena e Vale, tanto em "Príncipes, titulares do senhorio de Viseu" como depois, No quarto centenário de João de Barros, tem a cota dos AN/TT, Gaveta VII, m.5, doc. 20, o que não está correcto, por gralha de revisão, provavelmente. A actual Gaveta VII só tem 6 documentos. Pelo menos hoje (1992), a "minuta" pertence à Gaveta XVII, m.5, doc. 20, o qual contém quatro espécies documentais que são "rascunhos" para a minuta final. Esta, ou uma cópia do contrato, é o documento n.° 21 do referido maço. (Distinção de cota já assinalada na obra referida na nota seguinte, rubrica Gaveta XVII, 5-20 e 21).
(8) Cf., por exemplo, As Gavetas da Torre do Tombo, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1968, vol. II, pp. 413-419, 554-562. Deste casamento teve D. Manuel dois filhos: D. Carlos e D. Maria. O infante morreu com pouco mais de um ano, em 1521, antes do nascimento de D. Maria, a qual herdou, por cláusula contratual, metade do que teria recebido o irmão.
(9)Alteração à tirada na chancelaria régia do regimento dos tabeliães, em favor da chancelaria de D. Maria, em AN/TT, Chancelaria de D. João III, liv. 43, fl. 9 v., 2 de Novembro de 1545. (10) Lucena e Vale alvitrou a data compreendida entre 1544e 1546 para a doação de Viseu à infanta. Cf. No quarto centenário de João de Barros, p. 15, nota 15.
(11) Nos registos de 21 de Fevereiro de 1545.
(1 2 ) O segundo codicilo do testamento da mãe, datado de 15 de Fevereiro de 1558, estipula "que a infanta de Portugal possa tere gozar nosso dito dote que temos em França". Cf., sobre toda a matéria da herança, Joaquim Veríssimo Serrão, A Infanta Dona Maria (1521-1577)e a sua Fortuna no Sul da França, Lisboa, Revista" Ocidente", 1955; Gomes de Brito, As Tenças Testamentárias da Infanta D. Maria, "Archivo Historico Portuguez", V(1907),pp. 103-128,228-234; 307-314;367-383; VI(1908),pp.2Ml; 138-149; 202-224; 285-292. Sobre a infanta como "reserva política", vide Maria do Rosário de Sampaio Themudo Barata de Azevedo Cruz, ob. cit., p. 275.
(13) Os cinco contos de réis de 1544-1545 eram superiores à renda de um bom bispado em Portugal e às despesas de funcionamento da Universidade de Coimbra. A renda da mesa arcebispal de Braga (assim como a episcopal de Coimbra), andaria então à volta de uma pesada pensão em 1540 (1,5 conto) e a erecção da diocese de Miranda (1545). (Cf. DHIP, vol. II, pp. 475 ss.; João José Alves Dias, Gentes e Espaços (Em torno da População Portuguesa da Primeira Metade do Século XVI), Lisboa, 1992, p. 445). Em 1555, as rendas da Universidade de Coimbra andariam pelos cinco contos e meio, depois da união de bens do priorado de Santa Cruz (1545), no valor de cerca de 3,5 contos. Por volta de 1557, a despesa da Universidade orçava entre quatro e quatro e meio contos de réis. (Cf. Mário Brandão e Manuel Lopes de Almeida, A Universidade de Coimbra, Esboço da sua História, Coimbra, 1937, p. 194).
(14) São explicitamente nomeados, em 1572, D. Pedro da Guerra (150.000 réis) e D. João Pereira (100.000 réis). Os outros "juristas": João Gomes, tesoureiro da Casa da índia, compra 400.000 réis em 1556; em 1572: Francisco de Sá, 200.000 réis; Luís de Brito, 50.000 réis; João de Mendonça, 100.000 réis; 1577: João de Mendonça, 300.000 réis; Jorge de Mendonça, 150.000 réis; Fernão de Mendonça, 50.000 réis.
Cortesia de Miscelânea/Estudo Geral/Sib/UC/Tomo XXVII da Revista Portuguesa de História, 1992/JDACT