quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Rui de Pina: Um cronista e diplomata português. Foi nomeado guarda-mor da Torre do Tombo e da livraria régia por D. Manuel, em 1497. A Crónica de D. João II é a mais precisa, dado que o cronista foi actor e testemunha dos factos que relata

(1440-1522)
Guarda
Cortesia de marcasdasciencias
Rui de Pina foi um cronista e diplomata português. Ao serviço de D. João II, foi incumbido de várias missões diplomáticas, de entre as quais se destaca a representação dos interesses portugueses em Barcelona, após a viagem de descoberta de Colombo, procurando delimitar, em negociações que prenunciavam já o Tratado de Tordesilhas, os domínios destinados a Portugal e aqueles destinados a Espanha.
Foi nomeado cronista-mor do reino, guarda-mor da Torre do Tombo e da livraria régia por D. Manuel, em 1497. A actividade cronística desenvolve-se pelo menos desde 1490, data em que D. João II lhe atribui uma tença para «escrepver e assentar os feitos famosos asy nossos como de nossos Reynos».
Escreveu as crónicas de vários reis, entre os quais D. Sancho I, D.Afonso II, D.Sancho II, D.Afonso III, D.Dinis, D.Afonso IV, D.Duarte, D.Afonso V e D.João II adoptando um ponto de vista que exaltava os feitos dos monarcas.

Cortesia de Biblioteca Nacional Digital
As crónicas de D. Sancho I até D. Dinis foram editadas em Lisboa entre 1727 e 1729 por Miguel Lopes Ferreira. As três crónicas de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II foram editadas entre 1790 e 1792 nos Ineditos de Historia Portugueza da Academia de Ciências, em edição prefaciada e organizada por Correia da Serra.
Quanto à crónica de D. Afonso IV, foi impressa em 1653, em Lisboa, por Paulo Craesbeck, de acordo com os manuscritos organizados por Pedro de Mariz, escrivão da Torre do Tombo. Estas edições corroboram nas suas introduções e mesmo licenças o testemunho de Damião de Góis, na Crónica de D. Manuel, segundo o qual nem todas as obras que lhe eram atribuídas seriam de sua autoria.

Crónica de D, João II
Cortesia de iluminura
No prólogo à Crónica de D. Sancho I, o cronista Rui de Pina, propõe-se continuar o trabalho encetado por Duarte de Galvão com a Crónica de D. Afonso Henriques e elaborar a crónica dos sete primeiros reis de Portugal, lembrando as dificuldades acrescidas dessa tarefa, dada a escassez de fontes que justifica a inexistência de crónicas ordenadas anteriormente sobre o mesmo assunto:
  • «haa sómente por Lugares muy ocultos algumas lembranças, cartas confuzas, e muy duvidozas».
Na verdade, estas crónicas, segundo Damião de Góis, teriam sido construídas a partir de rascunhos de Fernão Lopes, refundindo uma Crónica Geral do Reino esboçada pelo primeiro cronista e que se supõe corresponderá à Crónica de Portugal de 1419.

Crónica de D. Afonso V
Cortesia de purl
Quanto às Crónicas de D. Duarte e D. Afonso V, supõe-se que tenham também a mão de dois autores ou pelo menos que tenham como base memórias deixadas por Gomes Eanes de Zurara. De todas as crónicas assinadas por Rui de Pina, a Crónica de D. João II é a mais precisa, dado que o cronista foi actor e testemunha dos factos que relata. Opondo-se ao estilo lacónico e conciso das crónicas anteriores, com excepção da Crónica de D. Afonso V, Rui de Pina apresenta uma narração mais viva e documentada.

Cortesia de cursodefilologiaportuguesa
De todas as polémicas que envolvem a extensa obra de Rui de Pina, desde o seu mérito como historiador, que cuja voz suportou fundamentalmente a versão oficial dos acontecimentos históricos, até aos problemas que decorrem da estrutura e fontes das suas crónicas, apenas se depreende que a obra de Rui de Pina ainda não mereceu um estudo exaustivo que contemple também o estudo estilístico comparativo das suas crónicas e dos textos dos autores de quem é pretenso plagiário ou recompilador.

Crónica do Senhor D. Duarte
Capítulo II
Como o Ifante Dom Duarte foi alevantudo por Rei e como foi aconselhado, que naquela hora se nom alevantasse.
Ao outro dia despois do falecimento d'ElRey que eram quinze dias d'Agosto, o Ifante Dom Duarte despois d'haver com os Ifantes seus irmãos conselho e deliberaçam sobre a maneira que ao diante havia de ter como Principe mui Catolico e prudente falou ante menhãa com seu Confessor aquelas culpas de que sentio sua conscientia gravada, e tomou o Santo Sacramento, para com a limpeza d'alma que devia, tomar o Cetro Real que o jaa esperava; e estando-se pera isso vestindo de ricos pano se Reaes, como para tal dignidade e ao auto seguinte convinha, chegou a ele Meestre Guedelha, Judeu, seu Fisico, e grande Astrologo, e lhe disse: «Parece-me Senhor que vos aparelhaes pera logo entrardes na Real Socessam que vos per dereito perteence. Peço-vos, Por merce, que este auto dilatees atee passar o meo dia, e nisso prazendo a Deos farees vosso proveito, e será bem de vosso Regno, porque estas horas em que fazees fundamento seer novamente obedecido mostram seer mui perigosas, e de mui triste constelaçam, ca Jupiter esta retrogado, e o Sol em decaimento com outros sinaes que no Ceo parecem assaz infelices». O Ifante lhe respondeo: «Bem sei Meestre Guedelha, que do grande amor que me tendes vos nacem estes cuidados de meu Estado e serviço, e eu nom dovido que a Astronomia seja boa, e uma das ciencias antre as outras permitidas e aprovadas, e que os Corpos inferiores são sogeitos aos sobrecelestes; porem o que principalmente crêo, e seer Deus sobre todo, e que com sua mão, e ordenança sam todas as cousa: e por tanto este Cargo que eu com sua graça espero tomar, seu é, e em seu nome, e com sperança de sua ajuda o tomo, a ele soo me encomendo, e aa Bemaventurada Virgem Maria Sua Madre Nossa Senhora, cujo dia hoje é, e com muita devaçam e devida humildade peço a Deos que me ensine, favoreça, e ajude a governar este seu povoo, que me ora quer encomendar como sentir que seja mais seu serviço». E Meestre Guedelha tornou dizendo: «Senhor a ele Praza que assi seja; como quer que nom era grande inconveniente sobre serdes nisto üu pouco para se tudo fazer prosperamente, e como devia.» E o Ifante lhe respondeo: «Nom farei, pois nom devo, ao menos por não parecer que mingoa em mi a sperança de firmeza que em Deos, e sua Fee devo ter». E logo Meestre Guedelha afirmou que regnaria poucos annos, e esses seriam de grandes fadigas, e trabalhos, como foram segundo ao diante se dirá.

Cortesia de espiraldotempo
O Terreiro dos Paaços d'Alcaçova onde o Ifante pousava foi mui altamente corregido para nele seer alevantado, e obedecido por Rei; ao qual saio em vestiduras Reaes, e mui ricas, acompanhado de mui nobre gente vestida, por aquela hora, de panos e corregimentos de festa, e alegria como é de custume. Assentou-se o Ifante em uma cadeira Real, posta sobre üu cadafalso alto acostado ao longo do Paaço da Galee, e cercado dos Ifantes, e d'outros Senhores, e oficiaes postos na ordenança que a cada üu para tal auto pertencia; e o Conde de Viana, D. Pedro, primeiro Capitam de Cepta, que a este tempo era neste Regno, por ser Alferes Moor, tomou a Bandeira Real, e a teve aa mão direita d'El-Rei revolta em sua haste atee que Dom Alvaro d'Abreu, Bispo d'Evora acabou de prepoer a arenga que em tal cerimonia é custumada, e necessaria; acabada a qual o Bispo se pôz em giolhos, e lhe quisera logo beijar a mão: mas o Ifante, por seu hábito e prelacia, lha não quiz dar; o qual Ifante Dom Duarte ao tempo que foi por Rei alevantado compria idade de quarenta e dous annos, e em se recolhendo para seu logar lhe disse o Ifante: «Bispo se vos bem parecesse eu queria que no cabo deste auto queimassem aqui ante mi üas poucas d'estopas, por lembrança e comparaçam que esta gloria, e pompa do mundo assi dura pouco, e passa mui brevemente.» «Parece-me, Senhor, disse o Bispo, que a memoria e conhecimento que disso tendes, escusa por agora outra cerimonia.» E a El-Rei pareceo bem. E logo o Conde Dom Pedro, despois de os Reis d'Armas darem pregões e gritas de silentio, despregou a Bandeira, e em voz alta deu tres vezes o acustumado pregam, declarando por Rei o Ifante Dom Duarte; a qual voz depois que o Conde acabou continoáram bradanda os Ifantes, e Senhores, e toda a outra gente que i era, beijando-lhe loga todos as mãos por legitimo, e verdadeiro Rei. e fazendo-lhe toda a outra cerimonia, e acatamento que aa perfeiçam daquele auto compria; e dali se recolheo El-Rei para seus paços, e o Conde com todolos Senhores a cavalo e muito povoo andou com a bandeira despregada por toda a Cidade, dando nas praças dela mais assinadas os mesmos pregões, acabados os quaes, tornáram, e a poseram solta sobre a Torre de Menagem do Castelo onde esteve atee noite, que se El-Rei tornou a seu Paaco, e leixou as vestiduras Reaes, e tomou doo de preto, e os Ifantes tomaram burel, segundo sempre atee aqui se custumou. Por que despois em tempo d'El-Rei Dom Manoel, por cujo mandado esta Cronica se compoz, geeralmente determinou, e mandou, que por nenhüu Rei, nem Principe, nem per outra algüa pessoa se nom trouxesse em seus Regnos burel sob certa pena, e assi se comprio.

Cortesia de espiraldotempo
Capítulo III
Das feições corporaes, virtudes, e costumes d'El-Rei Dom Duarte.
E porque as proporções corporaes dos Princepes passados, e suas virtudes, e costumes algüus historicos as custumaram pôr no cabo de suas estoreas, e muitos mais nos principios: eu neste passo seguirei a openiam dos mais; e por tanto é de saber que El-Rei Dom Duarte foi homem de boa statura do corpo, e de grandes e fortes membros: tinha o acatamento de sua presença, mui gracioso, os cabelos corredios, o rosto redondo e algüu tanto enverrugado, os olhos moles, e pouca barba; foi homem desenvolto, e custumado em todalas boas manhas, que no campo, na Corte, na paz, e na guerra a um perfeito Principe se requeressem; cavalgou ambalas selas da brida e de gineta, melhor que nenhüu de seu tempo; foi mui humano a todos, e de boa condiçam; prezou-se em sendo mancebo de bõo lutador, e assi o foi, e folgou muito com os que em seu tempo bem o faziam; foi caçador e monteiro, sem mingoa nem quebra do despacho e aviamento dos negocios necessarios: foi homem alegre, e de gracioso recebimento; foi Principe mui Catolico e amigo de Deos, de que deu clara prova a boa vontade e grande devaçam com que sempre recebia os sacramentos, e ouvia os Oficios Divinos, e compria mui perfeitamente as Obras da Misericordia; foi mui piadoso, e manteve mui inteiramente sua palavra como scripta verdade; amou muito a justiça; foi homem sesudo e de claro entendimento, amador de ciencia de que teve grande conhecimento, e nom per descurso d'Escolas, mas per continuar d'estudar, e leer per bõos livros, ca soomente foi gramatico, e algum tanto logico; fez um livro de Regimento pera os que custumarem andar a cavalo e compôs per si outro aderençado á Rainha Dona Lianor sua molher, a que entitulou o Leal Conselheiro, abastado de muitas e singulares doctrinas, specialmente para os bens d'alma; foi, e naceo natural eloquente, porque Deos o dotou pera isso com muitas graças; no comer, e beber, e dormir foi mui tenperado, e assi dotado de todalas outras perfeições do corpo, e d'alma. In Projecto Vercial, Rui de Pina, Crónica d'El-Rei D. Duarte, ed. de Alfredo Coelho de Magalhães, Porto, Renascença Portuguesa, 1914, pp. 69-71; 68-82.

Cortesia do Projecto Vercial/wikipédia/JDACT