Cortesia de bertrand
«Florbela Espanca morreu em 1930. Cinquenta anos depois, a sua obra continua a ser lida com um interesse que não esmorece, a sua vida continua a ser esmiuçada com uma curiosidade que da literatura está a passar à cinematografia, ou seja, à conquista do público mais vasto que se pode desejar.
A sua vida ê feita de insatisfação e revolta, a revolta que a levará à morte, a trágica negação do seu desejo. A sua vida é feita das contradições da vida de uma mulher que se sabe (e se quer) diferente. De uma mulher disposta ao sacrifício que toda a obra, literária ou outra, impõe.
A obra em prosa é, sobretudo no caso destes últimos contos, só um lugar de simplificação e não de clarificação do seu mistério. Florbela é uma mulher que (se) idealiza todo o tempo, não sendo capaz de ver no mundo que a rodeia a complexidade que possui. Só a si mesma concede o conjunto de qualidades que a seus olhos a tornam diferente e perfeita:
- «Honesta sem preconceitos, amorosa sem luxúria, casta sem formalidades, recta sem princípios e sempre viva, exaltantemente viva, miraculosamente viva, a palpitar de seiva quente como as flores selvagens da tua bárbara charneca!» escreve no Diário do Último Ano.
Idealiza aqui uma impossível conjunção de opostos, que nos seus contos, por exemplo, nunca se verificará. As mulheres honestas têm princípios de que nunca se afastam, como é o caso da mãe exemplar de «Mulher de Perdição», as amorosas, rectas e castas, opõem-se às que palpitam de «seiva quente», como se vê ainda nas outras duas figuras femininas do mesmo conto. Florbela idealiza ser o que não concede às suas personagens, enquadradas numa visão formal e tradicionalista da mulher que ela poderia (deveria) ter sido a primeira a recusar, dando-lhes uma outra autonomia e não apenas aqui e além o brilho (aliás sempre nefasto) da marginalidade.
Quando escreve no Diário
- «não tenho nenhum intuito especial ao escrever estas linhas, não viso nenhum objectivo, não tenho em vista nenhum fim. Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo, uma alma, se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude; conhece-me».
Deixa mais una vez a descoberto o que é o seu desejo, ser conhecida como a que se imagina, e que precisamente por ser imaginada não pode conhecer-se. Ser conhecida. Não diz ao outro conhecer-se, coloca só o seu desejo no centro, ao mesmo tempo que parece ignorá-lo: «Não tenho nenhum intuito especial ao escrever estas linhas…».
Demasiada egocêntrica, Florbela é em geral incapaz de transmitir às mulheres dos seus contos algo que lhe pertença, que as torne a elas mais vivas, mais complexas. Retrata apenas a imagem social a que foi habituada, e que nós gostaríamos de vê-la contestar.
Cortesia de florbelaespancalali
As mulheres são as sacrificadas a tais deuses, e uma ou outra vez as destruidoras perversas, porque os homens são deuses, senão não seriam nada. É o que se verifica em “O Dominó Preto”. Aqui um rapaz de condição humilde, «moço na mercearia da rua dos Olivais», de fraca aparência física, de mãos deformadas pelas frieiras, de larga cara bonacheirona e ingénua, ridículo no seu fato de cotim de mangas demasiado curtas, de cabeleira encrespada e sobrancelhas hirsutas, será vítima de uma paixão fatal por mais de uma dessas mulheres ligeiras, belas e enganosas, escondendo a perversidade por trás de um ar de boneca:
- «o pé de boneca calçado de sapatinhos de verniz com saltos de palmo e meio».
O rapaz mata-se. E nós continuamos com uma visão bipartida das mulheres, por um lado as excelentes, as enquadradas mães devotas e esposas fidelíssimas, por outro as marginais, cortesãs sofisticadas ou costureirinhas de teatro e um pouco perdida no meio a visão da poetisa «vestida de veludo branco e negro como uma andorinha» É uma mulher triste, que sofre com a condição de ao ser poeta ser igualmente mil almas a que não dá expressão». In Florbela Espanca, O Dominó Preto, Contos, prefácio de Y. K. Centeno, Livraria Bertrand, 1982, 152004/K.
Cortesia Livraria Bertrand/JDACT