jdact
«O duque de Saldanha foi absolvido do atentado de 19 de Maio, porque entre os homens públicos do Constitucionalismo se não achou um só de consciência limpa que lhe atirasse a primeira pedra. O ministério está organizado, glória aos vencedores!..., e limpo do pecado de origem.
A situação encontrou padrinhos, parlamentários, associados, amigos nascidos, como os cogumelos, da corrupção. E porque não seria assim? Se as parcerias politicas jogam o poder e o trapaceiam, e a trapaça não invalida o sucesso, como se havia de negar à violência o que se concede à astúcia e recusar a força dos pretorianos a legitimidade conferida às manhas dos chatins?
A revolução mostrava-se impotente depois de haver raptado o poder, com febril cupidez. Esperava-se ver sair um João Fernandes da crisálida de um César. Engano! Se a cobiça e a inépcia eram realidades, não o era o decoro. Constitui-se o gabinete...
Formado de elementos heterogénios, agremiados por interesses ilícitos, sem unidade de pensamento ou de acção, o actual ministério é filho legítimo do sistema constitucional, e seu fidelíssimo representante. Fruto da revolução, não tem energia para reformar, nem virtude para conservar. Nascido da Força, não poderá viver com a Lei. Foi levantado nos escudos.
Respeitará as garantias constitucionais? Conquistou o poder. Acatará a liberdade e o direito? Comprou os instrumentos e os amigos. Reorganizará as finanças?
jdact
fará cair a venda dos olhos do povo, evidenciará a insuficiência dos meios liberais, e a imoralidade e perversão do sistema. Aproximará a redenção, precipitando a solução da crise politica que há tantos anos aflige a Europa. A sedição de 19 de Maio recairá sobre a Coroa. São as constituições modernas o último baluarte das monarquias. Se elas por suas mãos e pelas mãos dos áulicos as derrubam, esperarão acaso que as reedifique o povo?
A entrada e depois a saída do Sr. Sampaio para o ministério, são mais um documento da impossibilidade orgânica do sistema constitucional. Porque entrou o jornalista regenerador? Porque saiu? Razões não há nem para um nem para outro facto, porque não são razoes as explicações miseráveis que o abaixamento da moral política dá aos factos dos últimos dias.
Nós, republicanos, nem precisamos já sequer patentear ao povo essa imundice em que chafurdam os políticos, porque demais o povo conhece já. O facto é que a costela regeneradora do ministério desapareceu; o facto é que desapareceu dentro dele o elemento que, a persistir, o havia de tornar uma continuação da situação “fusionista, 1867” e da situação enterrada, em cuja ideia se reduz a “conservar e tributar”.
Desapareceu, deixando o destino da causa publica nas mãos senis do duque, nas mãos ineptas do marquês de Angeja e nas mãos do actual verdadeiro chefe do gabinete, o sr. Dias Ferreira.
jdact
Anunciam-se reformas profundas:
- Supressão do Conselho de Estado politico, ficando 5 conselheiros para o contencioso administrativo;
- Modificação do Tribunal de Contas, sendo diminuído o numero de conselheiros e os seus vencimentos;
- Constituição de grandes círculos administrativos, espécies de republicas locais, encarregados da direcção administrativa e económica e da cobrança dos impostos;
- Supressão da Câmara dos Pares, até se constituir uma segunda Câmara com outra organização;
- Convocação de uma Câmara única, com poderes extraordinários limitados. Os deputados e este Parlamento não recebem subsídio;
- Instrução secundária e superior, pagas pelos alunos. A primária gratuita;
- Fiscalização das alfândegas, confiadas em parte ao Exército;
- Organização militar do país, sendo todos os cidadãos soldados e os corpos de linha apenas quadros e escolas.
Oxalá que, de tudo isto, o ministério pudesse conseguir só parte; oxalá que, ao menos, organizasse o Exército e a Instrução, e constituísse os grandes círculos administrativos. Seriam o primeiro passo para a organização dos “Estados”, um grande caminho andado na estrada da República (224)». In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.
Continua
Cortesia de Seara Nova/JDACT