sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Alfredo Alves: D. Henrique o Infante. Memória Histórica. Parte II


Cortesia de paulocampos
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«Declinava o dia e com ele iam desmaiando as alegrias da festa; o Rei também tinha uma dor a alanceá-lo; Nun'Alvares, o seu Condestável, não estava ali a seu lado, como a sua amizade antiga o requeria. Nun'Alvares andava assomado de génio; repartira ele pelos seus mais leais companheiros de armas grande número de suas terras, e D. João não pudera levar isso a bem. O Condestável quisera sair do reino, e o Rei mandou chamá-lo ao Porto, por intermédio de Ruy Lourenco, deão de Coimbra, e segunda vez por Fernão Rodrigues de Sequeira e ainda terceira pelo Bispo de Évora, D. João.
Aquele donzel, que aos 16 anos, todo entregue a castidade religiosa da Cavalaria, fora obrigado a casar-se por palavras suasorias de sua mãe Iria Gonçalves, depois da morte de D. Leonor de Alvim, sua esposa,—a viúva-donzela de Vasco Gonçalves Barroso— ficara com uma sombra no coração, que o ia, aos poucos, desprendendo das glórias do mundo.

Cortesia de paulocampos 
Viera ele de Braga ao Porto, em 1387, assistir aos últimos momentos dessa esposa estremecida, cerrara-lhe piedosamente os olhos, fizera descerem-na a cripta do mosteiro das Donas de Corpus Christi, em Vila Nova de Gaia, e voltara, tristonho, à cidade dos Arcebispos, às cortes que D. João ali tinha reunidas. Lá, para afugentar-lhe a tristeza, quiseram os reis que ele casasse com D. Beatriz de Castro, filha do Conde de Arraiolos, uma viúva também malograda, de Pedro Nunes de Lara, Conde de Maiorca. E o Condestável, como se ao de cima dele o ameaçasse uma nuvem negra, segundo frase sua, abalou de Braga e lá foi acoutar-se às suas terras do Alentejo, o seu campo de glória predilecto. E com esses acessos de tristeza e desânimo de tão egrégio cavaleiro, D. João sentia saudades dos seus tempos de Mestre de Avis; e por isso lastimava, como no dia do baptizado do Infante D. Henrique, não ter ali a seu lado o Condestável, a personificação do espírito da Cavalaria.
Baptizado o Infante, parece que a corte ainda continuou residindo no Porto; ao menos a 25 de Outubro do mesmo ano referendava D. João, nesta cidade, a carta de confirmação do Foral de Gaia.

D. João I
Cortesia de iluminura
Assim o Infante que mais tarde abriu a navegação e ao comércio, pela sua tenacidade inaudita, novos mares e novos portos, viu a luz da sua existência e passou os seus primeiros dias na cidade eminentemente trabalhadora, que melhor sintetiza o espírito enérgico das comunas medievais, burgo de comerciantes audaciosos em partirem o cristal verde das ondas do Atlântico com a recurvada proa dos seus barinéis, indo, rumo ao norte, ate aos portos de Inglaterra e de Flandres a «tresfegar suas merchandias»; e de mais a mais foi embalado o seu berço em uma casa de um «Almazem», uma Alfândega, canal por onde deriva toda a corrente das relações comerciais entre os povos.
Tal facto, para o homem que no século XV melhor simboliza o espírito fenício, é de uma coincidência notável.

Capítulo II
A Educação dos Infantes
D. Filipa era a melhor das esposas e a melhor das mães. Não era apaixonada, mas a sua bondade mostrava-se serena, inalterável. Sabia o que era o dever e cumpria-o sem esforço, naturalmente. O temperamento meridional de D. João I retraía-se ante aquela serenidade de alma da esposa, cujos olhos tinham a suave expressão dos que se perdem nas espirais vagas do sonho; naquelas pupilas azuis nunca fuzilava um raio de cólera nem relampagueava a menor centelha de paixão.

Rua Nuno Álvares
Cortesia de coisasdeabrantes 
Era boa e era casta, a rainha. Não tinha os grandes entusiasmos nem as grandes dedicações; toda a sua vida era regrada e piedosa; amava serenamente o esposo e serenamente também amava os filhos. Desde menina, lá no castelo dos Duques de Lancaster, costumava na sua capela senhorial rezar as horas canónicas, segundo o rito de Salisbury (Sarusbri, no dizer do Cronista Fernão Lopes), e isso todos os dias; as sextas-feiras, meditando na Paixão do Senhor, proferia todo o saltério; os jejuns nela eram frequentes, e no remanso das tardes passadas na solidão das grandes massas de arvoredos altos—por onde de quando em quando um ou outro veado desferia um galope, de assustado, chocando nos troncos ruidosamente a sua armação ramuda— a duquezinha Filipa, muito só e muito calma, à sua janela revestida de trepadeiras lia os velhos pergaminhos monásticos, com suas iluminuras esguias, falando cm coisas do Céu e em anseios da vida eterna.
Tal era o seu viver em donzela; depois de casada da mesma forma o continuou.

Cortesia de luzesdeesperanca
Quando D. João entrava em sua câmara, todo tremia de respeito; o guerreiro tornava-se pacifico e discreto ; e as falas da Rainha de tão doces e agradáveis faziam olvidar por algum tempo o tinir ameaçador das armas e as borrascas das rivalidades dos cortesãos.
Toda a mulher que vivesse no paço havia de ser digna do olhar sereno de D. Filipa. Nada de galanterias; posições claras e definidas, apenas. E D. João levou o escrúpulo a ponto do expediente tristemente irrisório de casar de um dia para o outro quase toda a corte! Era filho de D. Pedro, o dos legendários amores e das legendárias cruezas, havia de ter também a hereditariedade das extravagâncias do desequilibrado pai. Haja vista o trágico sucesso do galanteador Fernando Afonso, mandado queimar pelo Rei, num horroroso desvario. Mas apesar de tudo, a corte de Portugal tornou-se tão rígida em moral quanto dissoluta fora no reinado do desditoso e inteligente irmão do mestre de Avis. Era pois nesse ambiente de castidade e respeito que se criaram os infantes. A rainha deu vida a oito filhos:
  • Branca,
  • Afonso,
  • Duarte,
  • Pedro,
  • Henrique,
  • Isabel,
  • João, 
  • Fernando.
Branca e Afonso pouco viveram; a primeira extinguiu-se de oito meses apenas; o segundo falecido aos doze anos, lá dorme o seu bem prematuro sono da morte naquele esbelto e original túmulo dourado que se encontra ao lado direito da entrada da Sé de Braga. Só os restantes se tornaram adultos sob o influxo da educação austera, mas amorável, da suave filha dos duques de Lancaster.

Cortesia de hgp5
A corte portuguesa de então não tinha a estabilidade moderna; mudava-se de terra a terra a cada passo, e assim era preciso. O rei era, por assim dizer, o eixo da grande roda do maquinismo da nação, a ele convergiam todos os raios, isto e, todos os poderes; difíceis como eram as comunicações de cidade a cidade, de concelho a concelho, tornava-se necessário para conservar o equilíbrio politico ir ver de perto se o alcaide se olvidava da sua menagem ou se o concelho ultrapassava as prescrições do seu Foral. Por isso os reis desse tempo divagavam pelo país todo; e a chancelaria lá acompanhava os monarcas, pois são variadíssimas as indicações de localidades donde eram passados os diplomas da governação.
D. João I assim fazia; D. Filipa acompanhava-o muitas vezes; todavia a sua mais diuturna residência era em Lisboa, Évora e Santarém. E os infantes viviam nos paços com seus pais e toda a sua manutenção era dispensada pelo Rei. Todavia, correndo o ano de 1408 (era de 1446) reuniam-se cortes em Évora e em certa ocasião, estando na presença do monarca o Arcebispo de Lisboa, D. João, e o Condestável, os Mestres de Santiago e de Avis e o Prior do Hospital, bem como Gonçalo Vasques Coutinho, marechal, pediram alguns procuradores dos concelhos que D. João I estabelecesse casas aos Infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique.

D. Filipa
Cortesia de hirondino
O Rei acedeu. A D. Duarte, o herdeiro do trono depois da morte de D. Afonso, destinaram-se «oito contos», e aos outros dois «cinco contos», a cada um, bem como «quatro contos e meio para a logística».
Para isso o Rei tomaria o terço que «quitara» em Lisboa desde o começo das tréguas com Castela, e dos rendimentos metade seria para a manutenção dos infantes, e a outra conservada nas mãos de pessoas idóneas, serviria de comprar terras para os mesmos.
Não era demasiado para as casas dos infantes, porque a medida que iam crescendo assim agregavam a si servidores numerosos. Eles eram: confessores, pregadores, esmoleres, capelães, moços de capela, cavaleiros e escudeiros, pajens e moços de câmara, porteiros, reposteiros, moços de estribeira e da copa e do monte. E tais servidores nunca faltavam; tudo convergia para a corte a buscar engrandecimento ou protecção.
Ter moradia no paço era o sonho dourado de todo o que cingia uma espada ou se esforçava por fazer carreira de alcançar essa honra.

Cortesia de
Com a serena educação de D. Filipa enfloravam-se as almas dos Infantes; com os exemplos valorosos do pai iam-se eles ensaiando para altos cometimentos de armas.
E D. João sentia-se feliz com os filhos. Ele era um valente homem peninsular, trigueiro, forte, enérgico; se nascesse séculos em antes poderia ser, no Hermínio, um dos mais astuciosos companheiros de Viriato. Sim, era astuto; ninguém como ele foi mais prudente nos meios de alcançar o que se lhe preparava e que ele tinha em fito; mas o seu desígnio era inabalável e teimava, teimava até conseguir satisfaze-lo. No combater a sua espada era valentíssima, mas os seus golpes caíam pesados e calculados; a espada do Condestável, essa, floreava ao sol das batalhas, com um meneio largo como um voo, tentando livrar-se a um ambiente ideal de generosidade. O Condestável foi para ele a alma da sua aclamação como rei; sem o brilhantismo de acção daquele Cavaleiro modelo, a valentia prudente do bastardo de Avis seria suplantada e perdida.
E aquela lealdade e aquele valor de Nun'Alvares o Rei nunca esquecera a gratidão bem merecida.

Cortesia de nucleofilateliafaro
Não tivera mais útil servidor, não tivera mais dedicado amigo. A Rainha D. Leonor Telles dissera dele «ao Mestre de Avis todos os dentes abanam, excepto um». E tinha razão a ambiciosa mulher de D. Fernando, pois que Nun'Alvares consubstanciava em si toda a lealdade da alma popular. Por isso ele ficara sempre, na corte e no reino de Portugal, como o protótipo da honra e do valor. Aos filhos não podia o Rei dar melhor modelo. Se os primeiros monarcas da dinastia de Avis se esmeravam na educação afectuosa daqueles a quem haviam dado o ser, também estes não lhes podiam mostrar nem mais carinho nem mais gratidão. São páginas que encantam pelo doce aroma de afectuosidade, que delas se exala, as do «Leal Conselheiro» de D. Duarte, em que se refere o viver dos «Infantes de Avis» com os seus progenitores.

Encomendando todos os seus feitos a Deus, eles subordinavam todas as suas acções ao amor que dedicavam a seu pai e rei; se acaso conheciam que alguma coisa lhe desagradava eram todos esforços em afastá-la; solícitos, inquiriam a cada passo do que ele carecia; condescendentes, não tinham opinião de encontro à dele; sinceros, nunca uma só palavra de censura lhe destinaram na ausência; discretos, os seus lábios eram arca de qualquer segredo; nunca lhe mentiam; se ele se agastava com qualquer palavra inconsciente ou mal interpretada, eles eram todos, numa ânsia, concordes era pedir-lhe desculpa; tudo o que lhe causasse desgosto era dissimulado; preparavam-lhe festas e torneios para sua distracção; se ele adoecia, acorriam todos a ser seus enfermeiros; com ele trabalhavam, auxiliando-o no despacho da governação; o Rei mandava, sim, mas os requerimentos injustos tinham perante D. João calorosos adversários. Adoravam a Rainha como uma santa; e todos entre si, eram acordes nos mesmos afectos e propósitos». In G 286, H5A53, Porto, Typografia do Commercio do Porto, 1894.

Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT