quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Feliciano Falcão. Memória Viva: «...Depois, era a Festa da Senhora da Penha: com a irmã, as duas de saia cinzenta às preguinhas e camisas de seda com botões de pérola, de mãos dadas com o pai, a tropeçarem nas pedras soltas do caminho que levava à ermida.»

(1911-1988)
Portalegre
Cortesia de edicoescolibri-cmdeportalegre

Com a devida vénia e amizade a MJFalcão e António Ventura.

A Morte do Pai
«Iam a pé, devagar, seguindo o carro, em direcção ao cemitério. Era um fim de manhã de Agosto, o ar sufocante, o céu azul do Alentejo, parado, lá no alto. Juntara-se muita gente, velhas de negro com olhos cheios de outros mortos, mulheres, homens pensativos, rapazes e raparigas, sérios, de olhos baixos. Imaginava?

Cortesia de picasa
Talvez. Como ele gostaria de saber que tinham vindo acompanhá-lo, ele que amava tanto a juventude!
Era levada pela multidão, agora o ombro de uma amiga a ampará-la, a mão apertada da irmã, o beijo da outra irmã, depois o braço do filho a agarrar o seu com força, silencioso e presente, olhos escondidos detrás dos óculos escuros.
«Sabes, o avô é o meu ídolo», dissera um dia.
Não pusera luto e escolhera uma gravata azul de seda. Lá longe, a imagem da filha, e nos braços o seu pedido:

Cortesia de sempretops 
«Leva onze rosas vermelhas ao avô... ». Não eram onze, eram as poucas rosas vermelhas de Agosto, roubadas no jardim. Levava-as chegadas ao peito, enredadas no ramo selvagem que, de madrugada, colhera à volta da casa onde o pai vivera.

A noite passara-a ao lado da caixa escura em que, de vez em quando, pousava a mão sem sentir nada, batia com os dedos a chamá-lo, baixinho, e a saber que não podia estar ali e que se fora embora, para sempre. Rostos desconhecidos passavam em frente, vagos murmúrios, mãos que apertavam a sua. E a solidão. O pasmo de não querer aceitar aquela morte. Depois, foram ficando os velhos amigos, as criadas tristes, vestidas de escuro, apertando as malinhas, torcendo lenços. E a irmã mais velha que se agitava, se agitava, a falar para todos os lados, sem conseguir ter paz. A outra irmã levara a mãe para a casa da serra. A mãe, pequenina, frágil e perdida. À volta, as flores, no chão, as fitas de cores tristes, vozes de amigos, o adeus, «amigo, tu lá vais...», lá fora. E a noite negra, as estrelas pequeninas e a manhã a nascer, indiferente. A cidade branca dormia recortada no azul de metileno que lhe gelava o peito. As torres da sé dum lado, o castelo do outro e os pinheiros a subirem pela encosta.

Cortesia de fotoseimagens
De manhãzinha, tinha voltado à casa, que lhe parecera vazia. Tremia, nessa manhã de Agosto, a cara molhada e os olhos – doíam-lhe - fixos nas coisas que ele amara. E arranjara o ramo que agarrava com força, com as rosas, que a picavam. Arranhara-se a colher o botão de rosa amarela, ainda fresca, o fruto vermelho do medronheiro, uma laranja que não chegara a crescer, as flores humildes e, da azinhaga, um malmequer branco. As coisas simples que o pai soubera amar. Como se nesse ramo pudesse fixar para sempre o que os olhos dele tinham visto, como se acreditasse que pudesse levar, ali, uma lembrança da vida. Passavam agora na Corredora. Em baixo, o jardim, os chorões debruçados sobre o lago dos peixes encarnados. Existiria ainda o banco do José Duro?

Cortesia de avozportalegrense

Cortesia de alvaromendes
Um turbilhão de imagens coloridas. A música frenética do carrossel:
«Papá, posso ir na girafa?».
As barracas da feira cheias de luzes e de sorrisos, os palhaços no circo, às cambalhotas, ela a rir, a rir, os trapézios a voar. Palmas, palmas...

As festas dos santos populares, elas e o pai corriam os altares, desde a Rua da Mouraria ao Corro, onde estava uma orquestra e havia baile. Depois, era a Festa da Senhora da Penha: com a irmã, as duas de saia cinzenta às preguinhas e camisas de seda com botões de pérola, de mãos dadas com o pai, a tropeçarem nas pedras soltas do caminho que levava à ermida. O São Cristóvão e a escadaria até, ao alto, a Festa dos Aventais, nos Olhos d'Água e, sempre, o pai. A Senhora d'Alegria, em Alegrete, e lá estavam sentadas nos joelhos do pai e a pequenina ao colo da mãe. E os foguetes, a música, o cheiro dos bolos, o brilho nos olhos das pessoas, o sono.

Cortesia de avozportalegrense
Às esquinas, os homens tiravam o chapéu:
«Não sabia que tinha morrido o senhor doutor...».
Passavam em frente do liceu, o velho liceu da sua infância, da sua adolescência. E voltava a bater-lhe o coração. Ali se apaixonara. Naquele pátio. Cortara-se num vidro, a perna sangrava:
«Papá, vai-me doer?».
«Não dói nada, vais ver», e dois agrafos fecharam, delicadamente, a ferida.

Um dia de Natal. A dor, o medo:
«Papá, vou ser operada?».

Cortesia de pbase
Os dedos a segurarem-lhe o pulso, os olhos preocupados, a espreitarem o relógio, e a voz a tranquilizá-la:

«Não, está a passar... Não tenhas medo».

Adormecia, a dor passara.
As férias. A praia. As conchinhas cor-de-rosa e minúsculas de São Torpes, a mãe de vestido amarelo às flores, na água límpida até aos joelhos, o mar a perder de vista como a sua planície. O pai de fato de linho branco, sem tirar os sapatos, num banquinho, ao pé do toldo, a ler, sem ver o mar. O campo. A borboleta enorme, de asas douradas e castanhas.
«Venham ver... Não lhe toquem!...».

E a borboleta voava, voava. A gaiola do grilo que comprara no mercado e depois iria soltar nos campos amarelos. As calhandras, os cucos, os milhafres, o rouxinol. O canto do rouxinol, que ele lhe ensinara a reconhecer. O rouxinol que ouvira uma noite, lá longe, que parecia chamá-la e por isso viera ainda vê-lo antes de morrer.

Cortesia de labacm
O hospital. Lá fora, a cidade branca numa manhã de Maio. O céu azul, algumas nuvens. E as torres da Sé, à direita, o castelo, à esquerda e os pinheiros a treparem pela serra.
As andorinhas cortavam o céu, corriam, volteavam em frente da janela.
«Gostei muito que tivesses vindo. Gosto tanto de te ver...».
Era a última vez e os dois sabiam.
A cidade branca enevoava-se-lhe, as andorinhas já lá não estavam.
«Também eu. Papá…».

Cortesia de flickr
Entraram no cemitério. Os netos pegaram no caixão. Cinco, que a dor fizera crescer de repente. Eram cinco homens que levavam aos ombros o fim da infância. O esquife desceu, e a terra, as pedras, começaram a bater na madeira. As rosas vermelhas, o ramo selvagem, as flores serviram-lhe de leito. Ali ficou, coberto de restos. Olhou em frente, para lá dos ciprestes, e viu as terras douradas ao sol do meio-dia, a perderem-se no horizonte. Viu a planície sem fim. Baixou os olhos para o que cobria tudo. Nunca mais». In A morte do Pai, MJFalcão, Feliciano Falcão-Memória Viva, Edições Colibri e CMPortalegre, ISBN 972-772-440-X, 2003.

Cortesia de Edições Colibri/CMPortalegre/JDACT