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Nascidos no «congelador»
«Nós, seres humanos, somos, como sugere o nosso nome científico Homo sapiens, as «criaturas pensantes». Somos também, no grande esquema das coisas, recém-chegados.
A era que testemunhou o nosso aparecimento chama-se Plistocénico, palavra que significa «os tempos mais recentes» Abrange os últimos 2,4 milhões de anos. Os primeiros da nossa espécie - modernos em todos os aspectos físicos e mentais - surgiram na Terra há cerca de 150 mil anos em África, tendo aí os arqueólogos encontrado ossos, utensílios e restos de refeições. Essas pessoas, tinham evoluído dos seus antepassados de cérebro pequeno conhecidos como Homo Erectus, que haviam surgido cerca de dois milhões de anos antes.
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Talvez a força impulsionadora que transformou alguns «deles» em «nós» tenha sido a oportunidade oferecida pelas ricas linhas costeiras da cadeia de lagos africanos do Vale do Rift, ou talvez pela generosa Corrente das Agulhas que corre ao longo da costa sul do continente. Em lugares assim, novos alimentos e novos desafios podem ter estimulado o fabrico de utensílios especializados e fornecido uma vantagem evolutiva a pessoas de inteligência elevada.
O ambiente em que estes antepassados viviam era dominado por um clima frio, no qual o destino de todas as criaturas era determinado pelos ciclos de Milankovich. Sempre que estes ciclos expandiam o mundo gelado dos pólos, ventos gélidos varriam o planeta e as temperaturas desciam. Os lagos, encolhiam ou enchiam-se, generosas correntes marítimas transbordavam ou enfraqueciam, e tanto a vegetação como os animais empreendiam migrações continentais.
A herança genética vinda desse mundo de gelo está ainda connosco. Por exemplo, uma grande redução na diversidade dos nossos genes revela-nos um período há 100 mil anos quando os humanos eram tão raros quanto o são, hoje em dia, os gorilas. Podíamos facilmente ter desaparecido, já que tudo o que nos separou da extinção foram 2000 adultos férteis.
Nessa altura, os ciclos de Milankovich alteraram-se, beneficiando a nossa espécie, e há cerca de 60 mil anos pequenos bandos de humanos tinham-se espalhado, atravessando o Sinai até à Europa e Ásia. Há 46 mil anos, tinham atingido o continente-ilha australiano e, há 13 mil anos, já no fim da Idade do Gelo, encontraram as Américas.
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Éramos, então milhões no planeta e os grupos cresciam, da Tasmânia ao Alasca. No entanto, durante milhares de anos essas pessoas inteligentes, iguais a nós física e mentalmente, foram apenas caçadoras e colectoras. Em presença das nossas grandes realizações ao longo dos últimos l0 mil anos, esse longo período sem desenvolvimento cultural significativo é um enigma.
Estará o enigma relacionado com o clima?
Para responder a isso, temos de observar o registo do clima da Idade do Gelo.
Uma das fontes de informação sobre o clima é a madeira. Através dos anéis de troncos de árvore é possível saber como eram as coisas quando essa árvore vivia.
Anéis muito espaçados significam estações temperadas e florescentes, quando o Sol brilhava e a chuva caía nas alturas certas. Anéis comprimidos, registando um crescimento pequeno da árvore, falam-nos de adversidade, quando longos e duros invernos ou verões ressequidos e áridos punham à prova a vida, até aos limites.
O mais antigo ser vivo actualmente existente no nosso planeta é um pinheiro bristlecone (pinheiro da espécie pinus longaeva) que cresce a uma altitude de mais de 3000 metros no cimo das Montanhas Brancas, na Califórnia. Com mais de 4 600 anos, sobrevive em Methuselah Grove, juntamente com muitos outros espécimes antigos.
Pinheiro Bristlecone
Cortesia de glossariodenoticias
A sua localização exacta é um segredo bem guardado porque, devido à sua vulnerabilidade a perturbações externas, tem vindo lentamente a morrer de há dois mil anos para cá. No interior do seu tronco, esta árvore única oferece um registo detalhado e anual das condições climáticas na Califórnia. Compare-se o padrão inscrito no interior da árvore de Methuselah com a casca de um tronco morto ali próximo, e poder-se-á viajar no tempo l0 mil anos.
Actualmente já existem registos obtidos de anéis de árvores com esta abrangência cronológica, em ambos os hemisférios. Existe mesmo a esperança de que os grandes pinheiros kauri da Nova Zelândia, cuja madeira pode estar tombada em pântanos durante milénios sem apodrecer, possam fornecer um registo de até 60 mil anos de mudança climática.
Pinheiro Kauri
Cortesia devenerablesarboles
Apesar de todas as vantagens do método, o registo climático através das árvores é relativamente limitado na informação que nos pode dar. Se quisermos um registo verdadeiramente detalhado, temos de procurá-lo no gelo - mas apenas em determinados locais ele revela os seus segredos.
Um desses lugares é a calota de gelo de Quelccaya, nas altas montanhas do Peru. Ai, as quedas de neve anuais são separadas por uma faixa de pó escuro soprado dos desertos abaixo, durante a estação seca do Inverno. Pode ocorrer 3 metros de neve em Quelccaya num Verão, e as quedas subsequentes comprimem essa camada, transformando-a primeiro em nevado (neve compacta) e depois em gelo. Nesse processo ficam presas bolhas de ar - registos exactos que documentam as condições da atmosfera. Mesmo o pó contido nas bolhas é informativo, pois fala-nos da força e direcção dos ventos e das condições sob a calota.
Calota de gelo de Quelccaya
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As placas de gelo da Gronelândia e da Antárctida fornecem as amostras de gelo mais longas da Terra. Quando as condições são favoráveis, podem ser extraídos registos espectaculares. Em Junho de 2004, foi retirada uma amostra de gelo com cerca de três quilómetros de comprimento, de uma região da Antártida conhecida como Dome C (a cerca de 500 quilómetros da base científica Russa Vostok). Perfurar o gelo em profundidade é mais arriscado do que se possa pensar, e a extracção de uma tão longa amostra deve contar como um dos maiores êxitos da ciência.
No local onde se fez a perfuração fazia um frio intenso: -50ºC no início da época de perfuração e -25ºC a meio do Verão antárctico. A própria broca de perfurar tem apenas dez centímetros de diâmetro e, à medida que abre caminho para baixo, forma-se separadamente uma coluna estreita de gelo que é retirada para a superfície. O primeiro quilómetro foi especialmente difícil porque aí o gelo está envolvido com bolhas de ar. À medida que a amostra era extraída, as mesmas tinham tendência para despressurizar, fazendo com que o gelo se desfizesse em cacos inúteis. Pior do que isso, as lascas de gelo podem obstruir a cabeça da broca, fazendo-a parar de funcionar num ápice. No Verão de 1998-99, uma cabeça de broca encravada a mais de um quilómetro de profundidade obrigou a que se abandonasse o furo, não deixando à equipa outra opção senão a de recomeçar do princípio. Dessa vez, à medida que iam perfurando os três quilómetros até ao fundo, paravam a cada um ou dois metros para trazer a preciosa amostra à superfície. Quando a equipa ultrapassou o ponto atingido na perfuração anterior, a excitação era visível. «Sabíamos que estávamos a obter algo que nunca tinha sido visto antes», disse um elemento da equipa.
Dome C, Antárctida
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A amostra de Dome C permite-nos vislumbrar as condições existentes durante o chamado máximo glacial, quando o domínio do gelo é maior. A última vez que isso aconteceu foi entre 35 a 20 mil anos atrás. Nesse tempo, o nível do mar tinha, no mínimo, 100 metros a menos do que actualmente, alterando a própria forma dos continentes. As paisagens mais densamente habitadas da América do Norte e da Europa estavam nessa época debaixo de quilómetros de gelo. Mesmo regiões mais a sul do gelo, como a França central, eram desertos subárcticos sem árvores. Os períodos de 60 dias de crescimento da vegetação alternavam entre ventos gélidos do norte e fases mais calmas quando um nevoeiro sufocante de poeira glacial enchia o ar.
No final da Idade do Gelo, as mudanças eram grandes e sucediam-se muito rapidamente. Os climatologistas estão particularmente interessados no período compreendido entre 20 mil a l0 mil anos atrás, desde a época em que o máximo glacial começou a entrar em declínio, e, ao longo dos dez milénios seguintes, em que temperatura global de superfície da Terra aqueceu cerca de 5ºC - a subida mais rápida registada na história recente da Terra.
Cortesia de ww1rtp
Qual a comparação do ritmo e escala de mudança durante esse período com aquilo que se prevê acontecer este século?
Se não reduzirmos as nossas emissões de gases com efeito de estufa, parece inevitável ocorrer uma subida de 3ºC (com uma variação de 2ºC, para mais ou para menos) no decorrer do século XXI. No entanto, verificou-se que, no final do último máximo glacial, a variação mais rápida de subida de temperatura registada foi de apenas 1ºC por cada mil anos». In O Clima está nas Nossas Mãos, Tim Flannery 2006, Estrela Polar 2008, ISBN 978-972-8929-93-0.
Cortesia de Estrela Polar/JDACT