terça-feira, 30 de agosto de 2011

Painel de São Vicente de Fora. Nuno Gonçalves: Parte V. Painel dos Cavaleiros (3). Dois cintos insólitos. Uma obra-prima da pintura portuguesa do século XV, pintada a óleo entre 1470 e 1480.« A impressão psicológica é de desordem, de contradição, e parece reforçar a significação da cruz partida»

Cortesia de paineis

Painel dos Cavaleiros
Parte 3

Dois cintos insólitos
«A figura verde e a figura roxa não têm apenas em comum a raridade dos objectos que trazem ao pescoço. Ambas possuem também cintos invulgares e simbólicos. O observador que, a alguma distância, atente no segundo cinto (desapertado) do cavaleiro roxo, não pode deixar de sentir a intencionalidade da penumbra que o rodeia confundindo-o com a bainha da espada, com a sua fivela pendente do primeiro cinto (apertado à cintura) prolongando-se aparentemente numa tira de couro vertical com furos desalinhados e impossíveis. A impressão psicológica é de desordem, de contradição, e parece reforçar a significação da cruz partida.

Cortesia de paineis

A impressão provocada pelo cinto que o cavaleiro verde usa a tiracolo é exactamente a oposta, e parece reforçar a significação da pérola através de uma sugestão de perfeição e regularidade. Também ele é simbólico, uma vez que parece estar furado em toda a sua extensão de uma forma muito pouco utilitária, exactamente como o cinto do cavaleiro roxo! Note-se que o primeiro furo da ponta oposta à fivela invisível se destaca como um pequeno círculo negro muito próximo do círculo branco constituído pela pérola (que espantosas lições de elegância perdem os que insistem em reduzir a inteligência actuante a simples aparência trivial!) e que a restante porção do cinto que fica necessariamente próxima da fivela no outro extremo, depois de passar pelas costas e por baixo da axila, se encontra igualmente furada.
O leitor que não se aperceba da inverosimilhança do cinto do cavaleiro verde como adereço realista, terá apenas que experimentar a colocação a tiracolo do seu próprio cinto defronte de um espelho, de modo a conseguir uma distribuição de furos análoga: a operação é impossível, a menos que se trate de um cinto furado em toda a sua extensão, e a informação de que estamos perante mais um objecto simbólico é-nos comunicada por um único pequeno círculo negro, mesmo ao lado da pérola!

Dois cintos, portanto, igualmente insólitos mas convergindo com a intenção de outros objectos presentes nas figuras que os ostentam. E, mais uma vez, a «regra da irresolução» confirma a mistificação sistemática que acompanha e encobre os dados da charada: em ambos os casos os cintos parecem supérfluos, sem qualquer função para além da conferência de um estatuto moral aos seus proprietários, mas igualmente em ambos os casos, um exame mais detalhado abre a saída de emergência aos que não compreendem que o labor psicológico, intencional, contínuo, subtil, é muito mais revelador que a soma das justificações fracas e denunciadas que autorizam em permanência o álibi ingénuo. Ambos os cintos figuram afinal com uma possível função útil, detectável depois da primeira e importante impressão criada pela habilidade do pintor e para a fazer esquecer, porque podem estar ligados às bainhas das espadas e destinar-se a suportá-las como segundos cintos.

Regra da Irresolução

Cortesia de paineis

Vejamos como se cria esta nova ambiguidade:
  • O cavaleiro roxo tem o seu cinto enrolado à volta da bainha, o que explica a irregularidade dos furos, e, para o caso de haver dúvidas, existem outros dois cintos enrolados em espadas, «mesmo ao seu lado!» Tanto o «cavaleiro de vermelho» do mesmo painel, como a «figura próxima» e ajoelhada do painel central contíguo exibem cintos claramente enrolados nas suas espadas. Não existem outros exemplos, mas estes dois estão providencialmente próximos para acudir ao ponto de vista ingénuo que não procura muito longe. Em nenhum dos dois se nota sequer a presença de furos, mas têm ambos pequenas bossas que criam um efeito de enrolamento espiral algo similar, mas não idêntico nem sugestivo de irregularidade;
  • O cavaleiro verde, por seu lado, tem também dois cintos – a fivela do primeiro vê-se marginalmente perto da sua mão e portanto o cinto que usa a tiracolo pode ser o suporte da espada. É verdade que as correias de suporte da bainha desaparecem no limite do painel e não se consegue distinguir a qual dos dois cintos se dirigem, mas é assim que se consegue que a hipótese fique em aberto. Será preciso recordar que o painel dos Cavaleiros é um dos que não apresentam qualquer vestígio de desbaste lateral e a ambiguidade das correias de suporte está lá desde o início?

Cavaleiro de Vermelho
Figura Próxima
Cortesia de paineis

Se os dois cintos enrolados providenciais, a fivela disfarçada pela mão que permite deduzir dois cintos para o cavaleiro verde, e o suporte da sua espada, ambíguo e fora do painel, não chegarem para confirmar, mais uma vez, as intenções do pintor, propomos uma reflexão mais demorada sobre os furos do cinto regular e perfeito do detentor da pérola: se toda a sobreposição de pistas e contra-pistas é um acidente fortuito e o pintor se limitou a fazer o retrato daquilo que viu, como explicar um cinto feito de furos de uma ponta à outra? Mais uma moda estranha a acompanhar a das cruzes partidas, das mangas desiguais e dos barretes fraccionados, no políptico de todas as extravagâncias?» In Painéis de São Vicente de Fora.

Cortesia de Painéis/JDACT