sábado, 5 de novembro de 2011

Leonel Borrela. Cartas de Soror Mariana Alcoforado. Das Lettres Portugaises. «O desafio partiu de Rui de Melo, governador militar da cidade e cunhado de Mariana Alcoforado, então com 23 anos de idade. … um projecto de fortificação abaluartada, mas não vingou, embora se tivessem construído uns quantos troços ainda hoje identificáveis»

Cortesia de 100luz

Beja, em tempo de guerra
«Nunca houve tantas guerras na Europa como no século XVII. "O Império Otomano, a Áustria e a Suécia estiveram em guerra dois anos em três, a Espanha três em quatro, e a Polónia e a Rússia quatro anos em cinco. [...] apenas houve quatro anos de paz absoluta. Mais a França contra a Sabóia, seguida de Portugal contra a Espanha (1640-1668), temos o ambiente conturbado em que vivia quase toda a população do ocidente europeu, com o poder político ocupado na guerra e o religioso, pós Trento, da Contra-Reforma, do Santo Ofício e do Índex, a controlar e a reprimir os desvios reformistas, de Lutero e Calvino, da sociedade católica, ao mesmo tempo que recebe nos cenóbios de clausura rigorosa as crianças, principalmente femininas, e um dote avultado por cada uma das que pertença a famílias nobres, e sabe-se que não eram poucas.
Nessa impressionante mobilidade militar europeia de seiscentos, conveio à França auxiliar Portugal na sua luta pela independência face à Espanha, sendo de destacar, na fase final do conflito, os confrontos regulares, mais problemáticos e de maior importância, no Alentejo onde a cidade de Beja detinha um papel aparentemente subalternizado, ainda que mantivesse um aquartelamento de tropas inglesas, francesas e portuguesas.

Cortesia de 100luz

É, também, no mesmo contexto de guerra, sob o comando do marechal Schomberg (1615-1690), que vem a Portugal, em 1663, o Conde de Saint-Lèger (1636-1715), por cá permanecendo até final de 1667. O destacamento francês a que pertencia o conde de Chamilly-Saint-Lègere, como o tratava em 1664, o conde Schomberg, recebe ordens para sair da cidade de Beja, em 1667, pois havia um descontentamento local bastante grande pela sua presença, provavelmente devido ao aboletamento das tropas e outros abusos, quiçá escândalos de vária monta, pois já com os ingleses tinham havido problemas graves de sublevação militar.

No século XVII, Beja, pouco tinha extravasado os muros da sua fortificação de quase 2000m de perímetro, guarnecida de 48 torres e de 7 ou 8 portas (entre romanas, medievais e outras tardo-quinhentistas ou seiscentistas). Era branca, de ruas estreitas, seis conventos, um hospício de frades, dezenas de igrejas, um hospital principesco, alguns palácios, poucos largos e rossios, mas, do que se retira das fontes históricas, conservou-se incólume. Durante a guerra da restauração nunca foi tomada pelo país vizinho e, muito pelo contrário, fez-lhe frente, convidando com ironia D. João da Áustria - que ao acabar de tomar Évora, em 1663, enviara um ultimato a Beja para se render - a vir conquistá-la, se pudesse, pela força das armas. O desafio partiu de Rui de Melo, governador militar da cidade e cunhado de Mariana Alcoforado, então com 23 anos de idade. Nicolau de Langres, engenheiro militar, ainda lhe fez um projecto de fortificação abaluartada, mas não vingou, embora se tivessem construído uns quantos troços ainda hoje identificáveis. O real d'água cobrado em Beja para a sua fortificação acabou por se destinar às praças-fortes, muito mais assediadas, de Elvas, Campo Maior, Mourão e Moura.

Cortesia de 100luz

Beja não chegou a possuir a fortificação abaluartada seiscentista, contudo, ganhou na margem direita do rio Guadiana, um singular conjunto de fortins, a maioria em forma de barco, protectores e vigilantes das zonas de passagem a vau e do normal funcionamento dos moinhos e dos pisões. Cristovão Pantoja, guerreiro intrépido da Restauração, irmão de Rui de Melo, foi o obreiro de algumas dessas naves de pedra, que chegam a atingir os 22m de comprimento.
Trata-se, pois, de uma engenhosa linha defensiva, de fortificação de parte do percurso português do rio, que garantiu a passagem dos «comboios» de aprovisionamento das praças portuguesas situadas na margem esquerda:
  • Serpa,
  • Moura,
  • Mourão,
  • provavelmente Noudar, e Olivença.
In Leonel Borrela, Cartas de Soror Mariana Alcoforado, Edição 100Luz, 2007, ISBN 978-972-99886-7-7.

Cortesia de 100Luz/JDACT