quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Luís Manuel de Araújo. Estudos sobre erotismo no Antigo Egipto: «Aliás, não era por ver um ser nu que o Egípcio poderia sentir desejos eróticos, até porque habitualmente os trabalhadores que se esfalfavam na árdua faina dos campos e noutras actividades estavam nus ou seminus, como bem nos mostram os relevos tumulares»

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A boca da minha amada é uma flor de lótus. Os seus seios são mandrágoras. Poema de amor, Império Novo
«A análise do comportamento sexual dos antigos Egípcios e das suas reacções mentais em relação à união carnal está por fazer» - escrevia há algum tempo o apreciado egiptólogo francês Jean Yoyotte. Tal análise continuará ainda à espera de investigador afoito, atendendo a que esta série de trabalhos reunidos neste volume mais não pretende que evocar alguns aspectos relacionados com o erotismo no seu revestimento demiúrgico, e, como tal, sagrado, o erotismo no seu aspecto profiláctico, salientando-se alguns motivos erotizantes e já porno-concupiscentes, nomeadamente os que podem ser detectados em acervos egiptológicos existentes em Portugal. Apresentam-se ainda abordagens complementares, como um vislumbre do corpo humano, de homens e de deuses tal como era apreciado pelos antigos Egípcios nas suas proporções harmonicamente canonizadas e uma recolha de vocábulos para se poder aquilatar das presenças fálicas na escrita hieroglífica.
Ao apreciarmos o longo período de duração da história do antigo Egipto somos principalmente atraídos pela espectacularidade da arte, retendo por outro lado aspectos singulares ligados à sua evolução política, à literatura e à religião. Interessaria, no entanto, apreender também a mentalidade e os comportamentos desse povo laborioso e pacífico, amigo da vida aprazível. Nesse sentido assume alguma relevância um aspecto que, mau grado não estar documentado com abundância nem por isso deixa de ser significativo: trata-se do erotismo, o qual está patente na arte, na literatura e na própria religião, por vezes subtilmente expresso.

O erotismo que bosquejamos é aquele que, na expressividade sucinta do dicionário, está ligado ao amor sensual e às motivações sexuais patologicamente exageradas, e se pode detectar em múltiplas situações do quotidiano eternizadas pelos Egípcios nas representações artísticas, na literatura e em diversos objectos utilitários, ligados nomeadamente aos cuidados de beleza.

 
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Aceitando que o erotismo e as figurações eróticas ou erotizantes têm uma certa dimensão estética, teríamos como seu extremo a pornografia que, um tanto ostensivamente, desvela a adiafanidade subtil do erotismo e obsceniza o recato erótico. Dizemos extremo e não contrário, dado que a nudez, podendo ser erótica, não é necessariamente pornográfica. Aliás, não era por ver um ser nu que o Egípcio poderia sentir desejos eróticos, até porque habitualmente os trabalhadores que se esfalfavam na árdua faina dos campos e noutras actividades estavam nus ou seminus, como bem nos mostram os relevos tumulares. Notemos que um dos mais belos poemas de amor do Império Novo está impregnado de forte carga erótica justamente porque a rapariga evocada a sair da água não está nua mas sim vestida com uma túnica molhada que, na transparência do fino linho, se lhe cola ao corpo.

O erotismo que se detecta no espólio cultural e civilizacional do Egipto pode bem ser apreciado nas suas dimensões profilácticas e demiúrgicas. Relacionados com o primeiro caso estão os amuletos (figurinhas de Min e de anões itifálicos, falos testiculados, entre outros), os adornos e objectos de “toilette”, revestidos de um amplo sentido estético e funcional mas também prenhes de mensagem erótico-profiláctica. Neste âmbito poderíamos incluir os livros de sonhos e as receitas de afrodisíacos, os desenhos ousados em óstracos (alguns de cariz já pornográfico) e até o inefável e reservadíssimo Papiro de Turim ilustrando diversas e acrobáticas posições para berzúndicos coitos, numa animada orgia tebana.

Cortesia de fapydunredu

Cabem ainda no domínio da profilaxia erótica as apelativas decorações murais de alguns túmulos do Império Novo, sobretudo os da região tebana ocidental. Aí se pintaram cenas de banquetes e desfiles de oferendas, fainas campestres e passeios náuticos, imagens de suma felicidade e de bem-estar que se desejavam ver eternizadas, sendo tais cenas propiciatórias acompanhadas de textos que não só legendam as diversas situações idealizadas nas paredes tumulares mas ainda concorrem, com a força mágica da palavra e as invocações aos deuses, para que essas cenas se tornem realidade no Além. Um dos melhores exemplos do género, no que respeita ao eterno ágape, encontra-se num belo fresco retirado do túmulo de Nebamon, alto funcionário tebano que viveu durante a segunda metade do século XV a. C., nos reinados dos faraós Amen-hotep II e Tutmés IV (XVIII dinastia) e que agora se encontra em Londres, no British Museum. A cena, ainda com as cores originais praticamente intactas, mostra-nos um grupo de mulheres sentadas que participam num banquete. As damas presentes, vestidas com túnicas de linho e com cones perfumados sobre as fartas cabeleiras, batem palmas para acompanhar o ritmo musical da ária tocada por uma delas com uma flauta dupla, ao mesmo tempo que duas raparigas nuas dançam na sala, a qual está decorada com muitos elementos florais. O texto hieroglífico de acompanhamento, que se distribui verticalmente por várias colunas em cima das figuras, diz no essencial:

«Flores perfumadas que Ptah envia e Geb faz crescer.
A sua beleza está em todos os corpos.
Ptah fez isso com as suas mãos para alegrar o seu coração.
Os canais estão cheios de água.
A terra está inundada com o seu amor».

A natureza envolvente e a suavidade da paisagem nilótica predisporiam certamente o Egípcio para o amor». In Luís Manuel de Araújo, Estudos sobre erotismo no Antigo Egipto, Edições Colibri, Temas Pré-Clássicos, 2000, ISBN-972-8285-05-0.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT