«(…) Cuidado, Fernanda, não se arrisque. Solicitamos à estimada assistência o máximo silêncio durante a perigosa refeição. A criatura jovial principiou a subir à manivela a cabeceira da cama, como os tipos de farda azul que esticam a mesa alemã para os exercícios de saltos. O laço, teso de goma, do avental, vibrava-lhe no rabo à laia de uma asa de borboleta aprisionada. Quem vai papar o almocinho todo, quem é?, perguntou ela no tom irritantemente divertido de uma mestra de meninos. Sopinha, pescadinha, perinha, uma delícia, a capsulazinha antes e o comprimido depois, já está. Ariops, berrou triunfalmente o pai num molinete do braço. As tuas irmãs também têm telefonado, disse a mãe a retirar cuidadosamente as espinhas em forma de aspa, muito brancas, da pescada. Esta noite, com toda a gente que garantiu que aparecia, o quarto vai ser uma sociedade recreativa em terça-feira gorda: vou-me divertir imenso. Uma orquestra de parentes idosos, de casaco de palhetas prateadas, tocava um bolero lento ao pé do lavatório, com a expressão impassível ou vagamente aborrecida dos músicos de bar. À luz velada do candeeiro de folhos da mesa de cabeceira, enodoado de manchas, as enfermeiras, os médicos, os tios graves conversavam baixinho, mastigavam croquetes espetados em palitos, aproximavam e afastavam, ao acaso, os rostos pálidos e lunares. O doutor indiano dançava com a prima do tricot num recato digno de termas, quando arredam as mesas da sala de jantar para lúgubres serões de violoncelos tristes.
Quietos, repetiu o pai, estou a
ler o jornal. A mãe sorriu inesperadamente: a infância escorregou-lhe, lenta,
ao longo da boca, como a água num desnível de tábuas: Não te preocupes, disse
ela, tratam tão bem de mim aqui. Ele saía de casa com a mala cheia de rótulos
de hotéis estrangeiros e tu ficavas sozinha, minúscula a um canto da cama
enorme, a ler grossos livros ingleses incompreensíveis, romances, histórias de
guerra, um homem e uma mulher a beijarem-se sem vergonha na capa. Voltava três,
quatro dias depois, queimado do sol, com um resto de luz estranha nas pupilas
alheadas. Eu ia vê-lo fazer a barba de manhã, em calças de pijama e tronco nu,
fascinado pelo brilho da navalha. Usava Fixador Azevichex O Produto Favorito do
Homem De Sucesso, e gargarejava impetuosamente, de nariz no ar, contra a cárie,
a piorreia e o mau hálito: Quando eu for grande mando calar toda a gente para
ler o jornal. Os cães das Amoreiras, diante da clínica, farejavam no nevoeiro
as penas da galinha, um resto de sangue, o montículo gelatinoso e repelente das
tripas. A mãe marcava o livro com um bilhete de eléctrico, apagava a luz, e eu
tinha a certeza de que os olhos dela permaneciam abertos no escuro,
resplandecentes e fixos como os dos mortos nos retratos. Um telefone principiou
a chorar como uma criança numa mesinha baixa junto dele. Sim, respondeu a prima
que se apoderou velozmente do auscultador como um elefante do seu molho de
cenouras.
Sim. Sim. Não, passou bem a
noite, o médico visita-a logo à tarde. Se houver alguma alteração eu aviso-te. O
pai, a vaga culpabilidade do pai, a preocupação distraída do pai, a amante de
que conhecia apenas a voz rouca e densa, como se uma lamparina de álcool lhe
aquecesse permanentemente a garganta. Uma vez por mês almoçavam juntos num
restaurante ao pé do escritório dele, sem falar, comendo silenciosamente num
incómodo que se apalpava, que crescia. A calva inclinada para o prato luzia
como um bule. As bochechas aumentavam e diminuíam, elásticas, enquanto mastigava,
e vinham-me à ideia dias longínquos de infância, na quinta (a sombra móvel das árvores
no chão, o odor seco das folhas e da terra), e um homem novo, magro, alegre,
cujas gargalhadas se espalhavam no sossego da tarde, trotando, comigo às cavalitas,
a caminho de casa. Pensa: Vamos voltar o filme para trás, recomeçar. A prima
tapa o bocal com a mão: Queres dizer alguma coisa ao teu marido? O talher de
peixe estremece sem responder, agarro no aparelho: Pai.
As
sílabas chegam do outro lado, dentro do seu ouvido, nítidas e precisas como as
paisagens gravadas a estilete numa placa de bronze: Como está ela? O homem novo, magro e alegre,
deu lugar a um senhor de idade que engordava, apertando constantemente os
cabelos ralos contra as têmporas: Melhor, pai, melhor. Não se preocupe». In
António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote,
1983, ISBN 978-972-205-020-3.
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