segunda-feira, 7 de março de 2022

António Lobo Antunes. Explicação dos Pássaros. «Um telefone principiou a chorar como uma criança numa mesinha baixa junto dele. Sim, respondeu a prima que se apoderou velozmente do auscultador como um elefante do seu molho de cenouras»

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«(…) Cuidado, Fernanda, não se arrisque. Solicitamos à estimada assistência o máximo silêncio durante a perigosa refeição. A criatura jovial principiou a subir à manivela a cabeceira da cama, como os tipos de farda azul que esticam a mesa alemã para os exercícios de saltos. O laço, teso de goma, do avental, vibrava-lhe no rabo à laia de uma asa de borboleta aprisionada. Quem vai papar o almocinho todo, quem é?, perguntou ela no tom irritantemente divertido de uma mestra de meninos. Sopinha, pescadinha, perinha, uma delícia, a capsulazinha antes e o comprimido depois, já está. Ariops, berrou triunfalmente o pai num molinete do braço. As tuas irmãs também têm telefonado, disse a mãe a retirar cuidadosamente as espinhas em forma de aspa, muito brancas, da pescada. Esta noite, com toda a gente que garantiu que aparecia, o quarto vai ser uma sociedade recreativa em terça-feira gorda: vou-me divertir imenso. Uma orquestra de parentes idosos, de casaco de palhetas prateadas, tocava um bolero lento ao pé do lavatório, com a expressão impassível ou vagamente aborrecida dos músicos de bar. À luz velada do candeeiro de folhos da mesa de cabeceira, enodoado de manchas, as enfermeiras, os médicos, os tios graves conversavam baixinho, mastigavam croquetes espetados em palitos, aproximavam e afastavam, ao acaso, os rostos pálidos e lunares. O doutor indiano dançava com a prima do tricot num recato digno de termas, quando arredam as mesas da sala de jantar para lúgubres serões de violoncelos tristes.

Quietos, repetiu o pai, estou a ler o jornal. A mãe sorriu inesperadamente: a infância escorregou-lhe, lenta, ao longo da boca, como a água num desnível de tábuas: Não te preocupes, disse ela, tratam tão bem de mim aqui. Ele saía de casa com a mala cheia de rótulos de hotéis estrangeiros e tu ficavas sozinha, minúscula a um canto da cama enorme, a ler grossos livros ingleses incompreensíveis, romances, histórias de guerra, um homem e uma mulher a beijarem-se sem vergonha na capa. Voltava três, quatro dias depois, queimado do sol, com um resto de luz estranha nas pupilas alheadas. Eu ia vê-lo fazer a barba de manhã, em calças de pijama e tronco nu, fascinado pelo brilho da navalha. Usava Fixador Azevichex O Produto Favorito do Homem De Sucesso, e gargarejava impetuosamente, de nariz no ar, contra a cárie, a piorreia e o mau hálito: Quando eu for grande mando calar toda a gente para ler o jornal. Os cães das Amoreiras, diante da clínica, farejavam no nevoeiro as penas da galinha, um resto de sangue, o montículo gelatinoso e repelente das tripas. A mãe marcava o livro com um bilhete de eléctrico, apagava a luz, e eu tinha a certeza de que os olhos dela permaneciam abertos no escuro, resplandecentes e fixos como os dos mortos nos retratos. Um telefone principiou a chorar como uma criança numa mesinha baixa junto dele. Sim, respondeu a prima que se apoderou velozmente do auscultador como um elefante do seu molho de cenouras.

Sim. Sim. Não, passou bem a noite, o médico visita-a logo à tarde. Se houver alguma alteração eu aviso-te. O pai, a vaga culpabilidade do pai, a preocupação distraída do pai, a amante de que conhecia apenas a voz rouca e densa, como se uma lamparina de álcool lhe aquecesse permanentemente a garganta. Uma vez por mês almoçavam juntos num restaurante ao pé do escritório dele, sem falar, comendo silenciosamente num incómodo que se apalpava, que crescia. A calva inclinada para o prato luzia como um bule. As bochechas aumentavam e diminuíam, elásticas, enquanto mastigava, e vinham-me à ideia dias longínquos de infância, na quinta (a sombra móvel das árvores no chão, o odor seco das folhas e da terra), e um homem novo, magro, alegre, cujas gargalhadas se espalhavam no sossego da tarde, trotando, comigo às cavalitas, a caminho de casa. Pensa: Vamos voltar o filme para trás, recomeçar. A prima tapa o bocal com a mão: Queres dizer alguma coisa ao teu marido? O talher de peixe estremece sem responder, agarro no aparelho: Pai.

As sílabas chegam do outro lado, dentro do seu ouvido, nítidas e precisas como as paisagens gravadas a estilete numa placa de bronze:  Como está ela? O homem novo, magro e alegre, deu lugar a um senhor de idade que engordava, apertando constantemente os cabelos ralos contra as têmporas: Melhor, pai, melhor. Não se preocupe». In António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote, 1983, ISBN 978-972-205-020-3.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

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