«(…) Aquela parte da casa estava às escuras e silenciosa, só se ouvindo a respiração ritmada da sua mãe. Pelo som, a criança percebeu que ela estava a dormir profundamente; o barulho não a tinha acordado. Dirigiu-se rapidamente para a cama, levantou o cobertor de lã e deslizou por baixo dele. A mãe estava deitada de lado, com a boca entreaberta; a sua respiração morna acariciou a face da criança. Esta aconchegou-se, sentindo o corpo macio da mãe através da camisa de linho fino. Gudrun bocejou e mudou de posição, desperta pelo movimento. Abriu os olhos e, ensonada, olhou para a criança. Depois, acordando completamente, estendeu os braços e abraçou a filha. Joana, repreendeu-a ela, docemente, com os lábios junto do cabelo macio da criança. Pequenina, devias estar a dormir. Falando apressadamente, com a voz elevada e tensa pelo medo, Joana contou à mãe o aparecimento da mão monstruosa. Gudrun ouviu, acariciando e abraçando a filha e murmurando mimos. Com os dedos, percorreu docemente a face da criança, tacteando no escuro. Não era bonita, pensou Gudrun, com tristeza. Era demasiado parecida com ele, com o seu grosso pescoço inglês e o grande maxilar. O seu corpinho já era atarracado e pesado e não esguio e gracioso como os do povo de Gudrun. Mas, os olhos da criança eram generosos, grandes e expressivos, com pupilas de uma linda cor verde, com pequenos anéis de cinzento-escuro no centro. Gudrun levantou uma madeixa do cabelo da sua filha e acariciou-a, apreciando a forma como ele brilhava, de um louro-claro, mesmo na escuridão. O meu cabelo. Não o cabelo preto espigado do seu marido e do seu povo cruel e escuro. A minha filha. Enrolou um fio de cabelo em volta do dedo e sorriu. Pelo menos, esta é minha. Acalmada pela solicitude da mãe, Joana descontraiu-se. Imitando a mãe, começou a puxar a longa trança de Gudrun, desfazendo-a, até o cabelo cair em torno da sua cabeça. Joana ficou a olhar para ele, espalhando-o sobre a cobertura escura, como se fosse creme. Nunca tinha visto a mãe com o cabelo solto. Por insistência do cónego, Gudrun usava-o sempre bem preso, escondido sob uma touca de linho grosso. O seu marido dizia que o cabelo de uma mulher é a rede onde Satanás apanha a alma de um homem. E o cabelo de Gudrun era extraordinariamente belo, comprido, macio, dourado, sem um único cabelo branco, apesar de já ser uma idosa com trinta e seis primaveras.
Porque é que o Mateus e o João se
foram embora?, perguntou Joana, subitamente. A mãe já lhe tinha explicado várias
vezes, mas Joana queria ouvir novamente. Sabes bem porquê. O teu pai levou-os com
ele na sua viagem missionária. Porque é que eu não pude ir também? Gudrun
suspirou pacientemente. A filha estava sempre cheia de perguntas. O Mateus e o
João são rapazes; um dia, serão padres como o teu pai. Tu és uma rapariga, por
isso esses assuntos não te dizem respeito. Vendo que Joana não tinha ficado
satisfeita com a resposta, acrescentou: Além disso, és muito nova. Joana ficou
indignada. Fiz quatro anos no Wintarmanoth!
Os olhos de Gudrun brilharam
divertidos ao olhar para o rosto rechonchudo da criança. Ah, pois, já me
esquecia que tu, agora, és uma menina crescida, não é? Quatro anos! Já és muito
crescida. Joana ficou calada, enquanto a mãe lhe acariciava o cabelo. Depois
perguntou. O que são os pagãos? O pai e os irmãos tinham falado muito de pagãos
antes de terem partido. Joana não percebia exactamente o que eram pagãos, apesar
de pensar que devia ser qualquer coisa muito má. Gudrun ficou hirta. A palavra
tinha poderes de esconjuro. Tinha sido pronunciada pelos soldados invasores,
quando tinham pilhado a casa dela e morto a sua família e amigos. Os sinistros
e cruéis soldados de Carolus, o imperador dos Francos. Magnus, como o povo lhe
chamava agora, depois da sua morte. Carolus Magnus. Carlos Magno. Será que lhe
dariam esse título se tivessem visto o seu exército arrancar os bebés dos braços
das mães, fazendo-os voltear no ar, antes de esmagarem as suas cabeças contra
as pedras?, pensou Gudrun. Gudrun tirou a mão do cabelo de Joana e virou-se de
costas. Tens de perguntar ao teu pai, disse ela». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa
Joana, 2000, Editorial Presença, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.
Donna Woolfolk Cross, JDACT, Literatura, Vaticano,