Languedoq meados do sécalo XIII
«(…) O cabreiro deteve-se junto
de umas árvores que se encarrapitavam por um dos penhascos. Mal recuperara o
fôlego quando se encontrou perante dona Maria. Julián, filho, quanto me alegra
ver-te! Minha senhora... Vem, senta-te a meu lado, não temos muito tempo e
temos de o aproveitar. Quero que me contes como estão as coisas ali em baixo.
Os nossos espiões dizem que Hugues des Arcis conta com dez mil homens. Espero
que o conde de Toulouse não se amedronte perante essa força e cumpra os seus
compromissos para com esta terra. Não se trata apenas de fé, mas sim de poder. Que
dizeis, senhora? Se Hugues des Arcis conquistar Montségur, acabou-se a
liberdade na nossa terra. O rei quer estas terras porque, sem elas, o seu reino
não vale nada. Pensas que lhe interessam os cátaros? Não, filho, não te
iludas, aqui não se luta por Deus, mas sim pelo poder. Querem o nosso país para
a Coroa. Mas o papa quer erradicar a heresia! O papa sim, mas ao rei de França
tanto lhe faz. Senhora, dizeis cada
coisa...! Bem, não te cansarei com as minhas ideias, prefiro ouvir-te, ou
melhor, que respondas às minhas perguntas. Durante uma hora, dona Maria
interrogou Julián. Não houve pormenor acerca das forças de Hugues des Arcis
sobre as quais não lhe colocasse perguntas. E tu, Julián? Continuas a ser um
crente? Que sei eu! Estou confuso, senhora, já nem sei quem é Deus. Mas como é
possível que digas isso? Enganei-me contigo? Sempre te considerei inteligente,
por isso quis que estudasses e te tornasses dominicano... Contudo, a única
coisa que quereis é que atraiçoe os meus irmãos! O que quero é que sirvas o
Deus verdadeiro, e não o demónio que tens por Deus.
Julián persignou-se, espantado.
Dona Maria atormentava-o com as suas ideias heréticas e fazia-o duvidar. Ainda
recordava o dia em que o chamara para lhe dizer que encontrara o Deus
verdadeiro, e que a partir desse momento ele também o deveria servir. Explicou-lhe
que o mundo fora criado por uma divindade inferior, um demónio que encarcerara
os verdadeiros anjos, e que estes anjos eram as almas humanas que apenas se libertariam
com a morte. O corpo, disse-lhe, era uma prisão, o pior dos calabouços. Deus nada
tinha a ver com a terra oblivionis. Era Ele o artífice do espírito, não da realidade
material. Coexistiam duas criações, a má e a boa, a terrena e a espiritual. Os perfeitos,
acrescentou, ajudam-nos a encontrar o caminho para fugir da prisão e para que a
nossa alma se encontre no céu com essa parte do nosso espírito que voltará a
tornar-nos inteiros. Vi dom Fernando. Meu filho? Vosso filho». In
Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN
978-972-253-182-5.
Cortesia de BertandE/JDACT
JDACT, Julia Navarro, Literatura, Cátaros,