Languedoq meados do sécalo XIII
«(…) Se não vos incomoda,
desejaria ficar na tenda, afirmou Julián. Sinto-me mal. Quem sabe o sono me
sirva de ajuda. Direi ao médico que vos volte a examinar, disse frei. Não!
Rogo-vos! Não suportaria outra sangria! Um pouco de sopa e um pedaço de pão
para molhar no vinho serão os melhores dos remédios. Estou muito cansado, frei Pèire...
Creio que tem razão, intercedeu Fernando. O melhor que podemos fazer pelo meu
bom irmão é deixar que repouse. Não há nada melhor do que um bom sono reparador.
Quanto a vós, dom Fernando, esperam-vos para partilhar o jantar com meu senhor Hugues
des Arcis e o resto dos cavaleiros. Não me demorarei mais de um minuto, o tempo
que tardareis em trazer o caldo e o vinho com pão ao bom Julián. Com passo
diligente, frei Pèiré voltou a sair da tenda, preocupado pela palidez do irmão
Julián. Que Deus o perdoasse, mas acreditava ter visto a morte reflectida no
rosto dele. Sinto ter-vos causado pesar, disse Fernando, quando ficaram de novo
sós. Não vos preocupeis. Sim, preocupo-me porque vos aprecio, e quer gosteis
quer não, somos meios-irmãos. Isso não vos deveria afligir. Sois filho de um
nobre senhor da vila de Aínsa. E de uma criada de vossa casa.
De uma jovem bela e encantadora
que não teve outra opção senão entregar-se ao seu senhor. Não fui eu que ditei
as regras, nem estou de acordo com elas. Mas vós sabeis tão bem quanto eu que
os senhores têm filhos fora do matrimónio. Tivestes sorte, porque minha mãe
nunca abandonou os filhos bastardos, nem tão-pouco as suas mães. Procurou dar a
todos uma posição e colocou um especial empenho no vosso caso. Fostes criado no
nosso solar de família, aprendestes a montar a cavalo ao mesmo tempo que eu e fizeram-vos
aprender a ler e a escrever, inclusive, minha mãe comprou-vos o vosso cargo eclesiástico...
Mas sou um bastardo. Somos todos iguais perante os olhos de Deus. No dia do
Juízo Final não vos perguntarão pelo momento nem pela circunstância do vosso
nascimento, apenas por aquilo que fizestes nesta vida. Julián, aterrado,
começou a tossir convulsivamente enquanto Fernando tentava em vão fazê-lo beber
água. Acalmai-vos e bebei água! Mas, que vos está a acontecer? O juízo de
Deus..., sei que irei para o inferno. O frade tremia e as lágrimas
deslizavam-lhe pelas faces. A angústia e o medo converteram o escrivão da Inquisição
(maldita) numa criança. Mas,
Julián, qual a vossa culpa para que vos sintais assim? Vossa mãe, é ela a
culpada do meu sofrimento! Calai-vos! Como vos atreveis a dizer tamanha
barbaridade! As lágrimas inundaram o rosto do frade que, por entre fortes
convulsões, caiu no austero catre onde dormia. Fernando não sabia que fazer.
Sentia pena ao ver o estado de Julián, a quem sempre quisera e protegera, e que
preferia ao resto dos seus irmãos.
É uma sorte que tenha vindo connosco o
cavaleiro Armand. É um físico bom e no Oriente aumentou os seus conhecimentos.
Pedir-lhe-ei que vos visite e vos dê um remédio para o mal que vos apoquenta.
Agora tenho de ir. Amanhã, voltarei para vos ver. Fernando saiu da tenda,
intrigado pelo sofrimento de Julián. Preocupava-o, mais que o padecimento
físico do irmão, saber que tinha a alma apoquentada. Julián permaneceu um bom
bocado encolhido no catre. Nem sequer se mexeu quando frei Pèire lhe levou a
sopa, o pão e o vinho. Preferiu fingir que estava a dormir para não ter que se
confrontar com outra conversa acerca do seu calamitoso estado de saúde. Quando
deixou de ouvir os passos de frei Pèire, sentou-se para molhar o pedaço de pão
no vinho de sabor áspero que algumas vezes lhe conseguia levantar o ânimo.
Bebeu de uma só vez a sopa e voltou a estender-se, à espera que se
desvanecessem os ruídos do acampamento para acudir ao pedido de dona Maria. O
homem que lhe entregara a mensagem da senhora esperá-lo-ia no exterior do
acampamento para o conduzir através dos penhascos até ao lugar onde se devia
encontrar com ela.
Não soube quanto tempo passara
quando ouviu um ruído perto da tenda. Sentou-se sobressaltado, consciente de
que adormecera. Conseguiu levantar-se a muito custo e serviu-se de um copo de
água, que bebeu com sofreguidão. De seguida, enxaguou o rosto, vestiu o hábito
amarrotado, e saiu silenciosamente da tenda. Sentia que as pancadas do coração
podiam despertar o acampamento que nesse momento estava tranquilo, iluminado pelas
chamas das fogueiras que tentavam aliviar o frio intenso daquela noite de Inverno.
Escapuliu-se do acampamento com passos rápidos e dirigiu-se ao bosque, certo que
a qualquer momento apareceria o enviado de dona Maria.
Estais atrasado, recriminou-o o
homem que saiu ao seu encontro como se se tratasse de um espectro. Era um
cabreiro que conhecia bem os caminhos da montanha. Não pude vir antes. Ou
adormecestes, replicou o homem, de mau humor. Não, não adormeci, só que não
posso sair do acampamento quando me apetece. Pois outros o fazem. Isso é uma
surpresa! Surpreende-vos que entre os soldados recrutados à força existam
alguns que têm familiares ali em cima? Julián calou-se. De modo que Fernando
tinha razão. Havia quem entrasse e saísse de Montségur como de sua própria
casa. Onde é que a senhora me espera? Segui-me até ao lugar. Caminharam perto
de uma hora entre penhascos formados por blocos calcários que terminavam na
enorme rocha onde, desafiador ao olho humano, se encontrava o castelo de
Montségur». In Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017,
ISBN 978-972-253-182-5.
Cortesia de BertandE/JDACT
JDACT, Julia Navarro, Literatura, Cátaros,