«(…)
A
Irmã
Ligeiramente loura (às vezes só nos olhos se nota
esse louro ténuo, diluído), tem a pele daquele tom preciso que exige o verde, o
negro; um fato negro exageradamente e os cabelos um pouco erguidos, tombados
sobre a nuca. Olho-a: com um prato esquecido nas mãos magras e os cortinados
por detrás a acentuarem-lhe o início dos ombros nus. Recuo até ao aparador
baixo, castanho, com embutidos, onde me encosto a sentir através da saia o frio
quase tépido e áspero da madeira, e ela pausa o prato vazio na borda da mesa
oval, sobre a toalha branca bordada a branco e torna a ouvir o que lhe dizem,
as mãos magras ao de leve nos cabelos, a roçarem os brincos enormes (duas
argolas douradas a dançarem perto da cara), para logo pegarem num copo de vidro
como que ligeiramente suado, embaciado, que leva à boca sem nada beber,
distraída, talvez já sem nada ouvir, mas atenta, exteriormente atenta, o olhar
vago agora mais preciso quando ao mover a cabeça me olha de raspão e sorri, não
para mim, mas sorri exageradamente como quando era criança: toda ela posta nesse sorriso, entregue a esse
sorriso, e eu tão diferente a olhá-la através de toda uma distância construída
por nós próprias, mais por ela, quem sabe, uma mulher a empregar todos os seus
esforços para encontrar qualquer coisa em que acreditar, à custa de tudo,
sequiosa de si própria, e eu tão diferente, sequiosa, de outra maneira tão
terrivelmente sequiosa, a olhar-lhe o sorriso nesse momento tão louro, muito
mais louro do que os cabelos, um sorriso a condizer com os brincos, com o fato,
a condizer com os outros a quem momentaneamente aderia toda ela já solta noutra
direcção, naquela constante procura instável, teimosa, indecisa, sem sentido,
praticamente sem sentido definido, obstinada mesmo. E move-se passando de umas
pessoas para as outras, distribuindo aquela simpatia superficial de aparência
calorosa, espontânea, o fato negro escorrido nas ancas estreitas, os braços
colados ao corpo: com um copo esquecido nas mãos magras. Olho-a: as mãos longas
a roçarem os cabelos erguidos tombados sobre a nuca. Corro os dedos pela blusa
vermelha, de seda vermelha, intensa, e encosto a pele fria do copo aos cabelos
lisos sobre os ombros. Tão naturalmente diferentes desde crianças.
A
Infância
Olho-a enquanto se arranja para ir jantar fora.
Vejo-a através do espelho a abotoar a blusa verde de seda natural às ramagens
posta com a saia cor de pérola e não consigo penetrar na aridez fechada dos
seus olhos. Uma maquilhagem esquiva acentua-lhe o olhar, dissipa-lhe a boca.
Sentada na sua cama, balouço as pernas sem meias, umas pernas de Verão. Os
brincos, dois pequenos cachos de pérolas, aguardam na mesa baixa defronte do
espelho, sobre o napperon verde-musgo, ao lado do pente de cabo comprido e estreito.
Puxo os cabelos para trás das orelhas e no espelho vejo-me quase a seu lado: as
madeixas lisas sobre a testa, o resto do cabelo preso atrás das orelhas, liso e
comprido, ainda mais escuro em contraste com o seu, a certas horas do dia tão
louro como quando era pequena e eu a penteava arrepelando-a e ela gritava. E
todo este silêncio é um peso que tento evitar dizendo ou cantando baixo
qualquer coisa às vezes mesmo sem nexo; um peso difícil de suportar, um
silêncio visceral que sai de nós próprias e nos envolve. Que temos para dizer
uma à outra?
Olho-a atenta, a cara perto do espelho, as mãos
ambas perto dos olhos que acentua e que poderiam ser os meus olhos (somente um
pouco mais claros), se eu os pintasse. Alguma vez saberei se a invejo ou se me
faço deliberadamente assim, exactamente como sou? Puxo os cabelos para trás das
orelhas..., tudo o que nela é natural seria em mim fictício e o que ainda é
fictício nela em breve será natural e fresco, exactamente como o enviar a
alguém um malmequer tem para si a construção exacta, natural, de uma incerteza
sedenta, sendo porém um gesto tão sincero como o é também premeditado. Sei que
me fita sempre que desvio os olhos, aquilo que lhe desagrada em mim é o que
nela ainda não conseguiu encontrar e que provavelmente logo destruiria. Em todo
o caso foge e o silêncio tem o peso insuportável do vazio. Balouço as pernas.
Umas pernas de Verão que não me importo de mostrar talvez pela certeza que
adquiri de serem bonitas. Acabo por rir e isso é tão despropositado que tenho de
arranjar um motivo a todo o custo perante mim própria e para ela que pergunta
sem vontade: porque se está a rir?, exactamente como eu. Não sei. Mas invento
qualquer coisa tendo consciência no entanto de que soa a falso e de que ela
igualmente o sente no contorno incerto da minha voz, o que ainda a afasta mais;
por isso mesmo e também pela maneira natural como balanço as pernas. Há sempre
em mim uma oferta tão espontânea, uma maneira tão natural de fazer as coisas
naturais, que elas logo se tornam diferentes,
logo estranhas e ofensivas; praticamente ofensivas e ostensivas». In
Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa-América,
Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
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