domingo, 24 de abril de 2022

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Recuo até ao aparador baixo, castanho, com embutidos, onde me encosto a sentir através da saia o frio quase tépido e áspero da madeira, e ela pausa o prato vazio na borda da mesa oval…»

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A Irmã

Ligeiramente loura (às vezes só nos olhos se nota esse louro ténuo, diluído), tem a pele daquele tom preciso que exige o verde, o negro; um fato negro exageradamente e os cabelos um pouco erguidos, tombados sobre a nuca. Olho-a: com um prato esquecido nas mãos magras e os cortinados por detrás a acentuarem-lhe o início dos ombros nus. Recuo até ao aparador baixo, castanho, com embutidos, onde me encosto a sentir através da saia o frio quase tépido e áspero da madeira, e ela pausa o prato vazio na borda da mesa oval, sobre a toalha branca bordada a branco e torna a ouvir o que lhe dizem, as mãos magras ao de leve nos cabelos, a roçarem os brincos enormes (duas argolas douradas a dançarem perto da cara), para logo pegarem num copo de vidro como que ligeiramente suado, embaciado, que leva à boca sem nada beber, distraída, talvez já sem nada ouvir, mas atenta, exteriormente atenta, o olhar vago agora mais preciso quando ao mover a cabeça me olha de raspão e sorri, não para mim, mas sorri exageradamente como quando era criança: toda ela posta nesse sorriso, entregue a esse sorriso, e eu tão diferente a olhá-la através de toda uma distância construída por nós próprias, mais por ela, quem sabe, uma mulher a empregar todos os seus esforços para encontrar qualquer coisa em que acreditar, à custa de tudo, sequiosa de si própria, e eu tão diferente, sequiosa, de outra maneira tão terrivelmente sequiosa, a olhar-lhe o sorriso nesse momento tão louro, muito mais louro do que os cabelos, um sorriso a condizer com os brincos, com o fato, a condizer com os outros a quem momentaneamente aderia toda ela já solta noutra direcção, naquela constante procura instável, teimosa, indecisa, sem sentido, praticamente sem sentido definido, obstinada mesmo. E move-se passando de umas pessoas para as outras, distribuindo aquela simpatia superficial de aparência calorosa, espontânea, o fato negro escorrido nas ancas estreitas, os braços colados ao corpo: com um copo esquecido nas mãos magras. Olho-a: as mãos longas a roçarem os cabelos erguidos tombados sobre a nuca. Corro os dedos pela blusa vermelha, de seda vermelha, intensa, e encosto a pele fria do copo aos cabelos lisos sobre os ombros. Tão naturalmente diferentes desde crianças.

A Infância

Olho-a enquanto se arranja para ir jantar fora. Vejo-a através do espelho a abotoar a blusa verde de seda natural às ramagens posta com a saia cor de pérola e não consigo penetrar na aridez fechada dos seus olhos. Uma maquilhagem esquiva acentua-lhe o olhar, dissipa-lhe a boca. Sentada na sua cama, balouço as pernas sem meias, umas pernas de Verão. Os brincos, dois pequenos cachos de pérolas, aguardam na mesa baixa defronte do espelho, sobre o napperon verde-musgo, ao lado do pente de cabo comprido e estreito. Puxo os cabelos para trás das orelhas e no espelho vejo-me quase a seu lado: as madeixas lisas sobre a testa, o resto do cabelo preso atrás das orelhas, liso e comprido, ainda mais escuro em contraste com o seu, a certas horas do dia tão louro como quando era pequena e eu a penteava arrepelando-a e ela gritava. E todo este silêncio é um peso que tento evitar dizendo ou cantando baixo qualquer coisa às vezes mesmo sem nexo; um peso difícil de suportar, um silêncio visceral que sai de nós próprias e nos envolve. Que temos para dizer uma à outra?

Olho-a atenta, a cara perto do espelho, as mãos ambas perto dos olhos que acentua e que poderiam ser os meus olhos (somente um pouco mais claros), se eu os pintasse. Alguma vez saberei se a invejo ou se me faço deliberadamente assim, exactamente como sou? Puxo os cabelos para trás das orelhas..., tudo o que nela é natural seria em mim fictício e o que ainda é fictício nela em breve será natural e fresco, exactamente como o enviar a alguém um malmequer tem para si a construção exacta, natural, de uma incerteza sedenta, sendo porém um gesto tão sincero como o é também premeditado. Sei que me fita sempre que desvio os olhos, aquilo que lhe desagrada em mim é o que nela ainda não conseguiu encontrar e que provavelmente logo destruiria. Em todo o caso foge e o silêncio tem o peso insuportável do vazio. Balouço as pernas. Umas pernas de Verão que não me importo de mostrar talvez pela certeza que adquiri de serem bonitas. Acabo por rir e isso é tão despropositado que tenho de arranjar um motivo a todo o custo perante mim própria e para ela que pergunta sem vontade: porque se está a rir?, exactamente como eu. Não sei. Mas invento qualquer coisa tendo consciência no entanto de que soa a falso e de que ela igualmente o sente no contorno incerto da minha voz, o que ainda a afasta mais; por isso mesmo e também pela maneira natural como balanço as pernas. Há sempre em mim uma oferta tão espontânea, uma maneira tão natural de fazer as coisas naturais, que elas logo se tornam diferentes, logo estranhas e ofensivas; praticamente ofensivas e ostensivas». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa-América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEuropaAmérica/JDACT

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