«(…) Esta divindade inacessível não nos fala, portanto, directamente, mas por símbolos, ou seja, por aspectos do mundo natural que, embora incompletamente, nos remetem para a sua origem, de modo que o mundo parece (como sugere Hugo São Vítor) um imenso livro escrito pelo dedo de Deus e onde, segundo Ricardo São Vítor, todos os corpos visíveis manifestam alguma semelhança com os bens invisíveis. Ler o mundo como reunião de símbolos é o melhor modo de pôr em prática o ditame dionisíaco e de poder elaborar e atribuir nomes divinos (e com eles moralidades, revelações, regras de vida, modelos de conhecimento). E João Escoto Eriúgena dissera, em chave neoplatónica, que não há nenhuma coisa visível e corpórea que não signifique alguma coisa invisível e incorpórea. A segunda fonte é de origem escrituram e tem a sua mais extensa teorização em Agostinho. Se videmus nunc per speculum et in ænigmate, enigmático será também o discurso das Escrituras. E não só no sentido de que as Sagradas Escrituras usam metáforas e outras expressões figuradas, mas também que os próprios factos que narram não devem, muitas vezes, ser tomados à letra, mas como sinais de uma realidade ou preceito superior. Ora, visto que alguns factos de que falam as Escrituras, como, por exemplo, os pormenores do nascimento de Jesus ou da sua Paixão, são, certamente, tomados à letra, Agostinho põe o problema de saber que factos não têm valor literal mas alegórico, e fornece algumas regras para a identificação desses casos: os factos significam outra coisa quando parecem contradizer as verdades da fé ou os bons costumes, quando a Escritura se perde em superfluidades ou põe em jogo expressões literalmente pobres, quando se detém excessivamente na descrição de alguma coisa sem que vejamos as razões de tão grande insistência na descrição. Enfim, têm certamente um segundo sentido as expressões semanticamente pobres como os nomes próprios, os números e os termos técnicos.
Mas
se a Bíblia fala por personagens, objectos e acontecimentos; se nomeia flores,
prodígios da natureza ou pedras, se põe em jogo subtilezas matemáticas, convirá
procurar no saber tradicional qual é o significado daquela pedra, daquela flor,
daquele monstro ou daquele número. E eis porque depois de Agostinho a Idade Média
começa a elaborar as suas enciclopédias, para definir com base na tradição
as regras da atribuição de um significado figural a qualquer elemento do mobiliário
do mundo físico. Deste modo, até os sátiros e os ciápodes adquirem significado
espiritual e, admitindo que nunca seriam encontrados, também teriam significado
espiritual os animais, as plantas e as pedras do bestiário, do herbário e do lapidário
quotidianos. Estas enciclopédias tratam (para definir as matérias em termos
contemporâneos) dos céus, de geografia, demografia e etnografia, de
antropologia e fisiologia humana, de zoologia, botânica, agricultura,
jardinagem, farmacopeia natural, medicina e magia, mineralogia, arquitectura e
artes plásticas. Mas uma característica, que as distingue das enciclopédias modernas,
é não pretenderem registar o que realmente existe, mas aquilo que
tradicionalmente se considera existir (dando igual espaço ao crocodilo e ao
basilisco). Eis, pois, como o homem medieval vive num cosmo falante, disposto a
escutar a palavra de Deus até no marulhar de uma folha.
Mas
não há uma Idade Média única, como está dito, e entre os séculos XII e XIII,
pelo menos nas universidades, esta visão simbólica do mundo acaba por se
debilitar e abre espaço, pouco a pouco, a explicações mais naturalistas. No
entanto, o que torna difícil distinguir uma Idade Média de outra é que o filósofo
que tentava ler a natureza segundo a filosofia aristotélica podia consultar
velhos manuscritos ou livros de orações que tinham nas margens imagens de criaturas
lendárias, e nenhum, na verdade, nos diz se no seu íntimo ainda as tomava a sério.
Por outro lado, não são raros nos nossos dias os homens de ciência que, fora
dos seus laboratórios, mandam ler a sina na palma da mão ou vão assistir a sessões
de espiritismo. A Idade Média tem uma ideia da tradição e da inovação diferente
da nossa. Como se verá, considera que somos anões aos ombros de gigantes, isto é,
que vemos algo mais do que os nossos predecessores, mas só porque nos baseamos
no seu discurso precedente. Neste sentido, o autor medieval, que não raro
inova, e frequentemente de modo radical, finge sempre comentar e explicar o que
já foi dito antes dele, e provavelmente acredita nisso, pois admite que a
autoridade tem um nariz de cera que pode ser virado em todas as direcções». In Umberto Eco, Idade
Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN
978-972-204-479-0.
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