De acordo com o original
«(…) Não tarda que comece a amanhecer. E como estavam á porta de casa: Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vae. Iam á vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso. Mas á ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair sobre o banco que estava debaixo do alpendre, e desatou a chorar violentamente. O barqueiro tentou animal-o, constrangido. Então, sr. José?... O chorar é lá para as mulheres. Olhem agora que homem! E tentava levantal-o, pol-o de pé. Limpe lá essas lagrimas, que vae affligir o pequeno! Ou quer que elle vá a chorar todo o caminho? O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e poz-se a enxugar os olhos com a manga da camisa. Pois então levante-se lá. E segurou-o com força por baixo dos braços. Assim! Lá porque o pequeno vae para o Brazil não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver. Mas era isso mesmo o que elle pensava... Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno, concluiu a chorar o José Cosme.
Scismas! lembranças que veem á gente quando está afflicta. Mas ha-de vel-o que o não ha-de conhecer, digo-lh'o eu. Mais anno menos anno, apparece-lhe ahi rico... Rico! bem lhe importava a elle que o pequeno viesse rico. O que desejava era que voltasse e que elle ainda fosse vivo só para o abraçar. Pois sim, mas era preciso aviar, que tivesse paciencia: o José Cosme que se animasse para animar o pequeno, recommendava o barqueiro. Sim..., sim..., tartamudeava o Cosme. Vamos lá com Deus! Com'assim… E n'um profundo ai dolorosissimo, foi-se direito á porta para chamar a pequeno. Não havia remedio, tinha nascido em má hora, havia de ser desgraçado até que o levassem para a cova... Sobre a estreita e humilde cama o filho dormia profundamente. Que dôr, ter do o acordar! Vieram-lhe tentações de mandar embora o Thomaz e deixar dormir a creança. Quem sabe se a sua sorte futura, se toda a sua vida, valeria a boa tranquilidade d'aquelle somno! Não tinha coragem para o acordar, fazel-o vestir: era quasi um peccado quebrar aquelle ultimo somno dormido sob o tecto paterno... O ultimo somno! o ultimo somno! Ainda se o deixassemos acordar..., aventurou-se a dizer o triste. Mas o Thomaz que estava com pressa, lembrou seccamente que eram horas de pôr o barco a andar.
O José Cosme accendeu então a candeia, reccioso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho poz-se a escutar-lhe a respiração. Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça e chamou baixinho, quasi ao ouvido, beijando-o, sobresaltado como se fosse praticar um grande crime: Filho, olha que são horas, meu filho... Quando o pequeno se sentou na cama, estremunhado, ainda sob o estonteamento do somno, cerrando os olhos áquella hostilidade viva da luz, o pae agarrou-se a elle n'um abraço, e ambos romperam a chorar. Adeus, pae! Adeus, filho!
Confrangido, o Thomaz que se deixara ficar á porta, avançou para desatar aquelle abraço. Olhe que é tarde, sr. José. Perdoe, mas olhe que é tarde! O pae vestiu o pequeno, beijou-o ainda muito, e sairam. Debaixo do alpendre, o Joaquimsito ficou-se um instante a olhar o tecto. A andorinha, filho?, perguntou o José Cosme. Deixa que eu hei-de olhar por ella, mais pelos filhos quando os tiver. Vae socegado. Mas o pequeno quiz vel-a, pediu ao pae que o erguesse, era só um instante. Lá estava ella, coitadinha! sentiu-a estremecer quando lhe tocou com as pontas dos dedos... Adeus!, disse-lhe o pequeno afagando-a.
A esta palavra, o pae retrahiu os braços e tomando o filho no collo seguiu. Atraz, o barqueiro levava ao hombro a misera arca de pinho: toda a bagagem do Joaquim. Ao transpor o cancello o José Cosme deteve-se um pouco e perguntou soluçando: Quando voltarás ao horto, meu filho? O pequeno não respondeu. Chorava constantemente de ver que o separavam de tudo o que adorava, a andorinha, depois da andorinha o horto, as arvores, a velha nora, o cancello, tudo emfim. Atravessaram então a estrada e tomaram para a banda do rio. Quando o sentiram murmurar, aperraram mais o abraço, deram-se um longo beijo, humido das lagrimas que ambos derramavam. Ah, como o triste pae desejava que o rio ficasse ainda longe, mui longe, que fugisse deante d'elles, de modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia principiava, divisava-se já perto o vulto escuro do barco onde os da tripulação fallavam alto. Prompto?, perguntou ainda de longe o Thomaz». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.
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