domingo, 3 de abril de 2022

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Divertia-me procurar as citações pertinentes. Modulava. Como me acontecia às vezes, nos comícios, enfileirar sob uma ou outra faixa só para seguir alguma garota que me perturbava a imaginação….»

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Binah

«(…) Que de facto pensava há quinze anos passados? Cônscio de não crer, sentia-me culpado no meio a tantos que criam. Ao sentir que estavam certos, decidi também crer assim como quem toma uma aspirina. Mal não faz, e nos sentimos melhor. Vi-me metido na Revolução, ou pelo menos na mais estupenda simulação que dela já fizeram, buscando uma fé honrosa. Julguei que era digno participar de assembleias e desfiles, gritei com os outros fascistas, burgueses, agora poucos meses!, não atirei pedras de calçadas nem esferas de metal porque sempre tive medo que os outros fizessem comigo aquilo que eu estava fazendo com eles, mas experimentava uma espécie de excitação moral ao fugir correndo pelas ruas do centro, quando a polícia investia contra nós. Voltava para casa com a sensação de haver cumprido um dever qualquer. Nas assembleias não conseguia apaixonar-me pelas divergências que dividiam os grupos: suspeitava que seria suficiente encontrar a citação apropriada para se passar de um grupo ao outro. Divertia-me procurar as citações pertinentes. Modulava. Como me acontecia às vezes, nos comícios, enfileirar sob uma ou outra faixa só para seguir alguma garota que me perturbava a imaginação, concluí daí que para muitos de meus companheiros a militância política talvez fosse uma experiência sexual, e o sexo era uma paixão. Eu queria ter apenas curiosidade. É certo que no curso de minhas leituras sobre os Templários, e sobre várias ferocidades que lhes eram atribuídas, dera com a afirmação de Carpócrates que, para libertar-se da tirania dos anjos, senhores do cosmo, acaba perpetrando todas as ignomínias, libertando-se dos débitos contraídos com o universo e com o próprio corpo, pois somente cometendo todas as acções a alma pode redimir-se das próprias paixões, reencontrando a pureza original.

Enquanto inventávamos o Plano, descobri que muitos drogados do mistério, para encontrar a iluminação, seguem aquele caminho. Mas Aleister Crowley, que foi definido como o homem mais perverso de todos os tempos, e que portanto fazia tudo o que podia fazer com devotos de ambos os sexos, só transou segundo os seus biógrafos com mulheres feiíssimas (imagino que também os homens, a julgar pelo que escreviam, não fossem melhores), e me permanece a suspeita de que nunca tenha de facto feito amor de maneira completa. Deve depender de uma relação entre a sede do poder e a impotentia coeundi. Marx me parecia simpático porque eu tinha certeza de que ele e sua Jenny faziam amor com gosto. Sente-se isso pelo respirar pacato de sua prosa, e de seu humor. Uma vez, ao contrário, nos corredores da universidade, eu disse que, de tanto se ir para a cama com a Krupskaia se acabava escrevendo um livreco como Materialismo e empiriocriticismo. Arrisquei ser expulso e disseram que eu era fascista. Disse-o um sujeito alto, de bigodes à tártara. Recordo-me dele perfeitamente, hoje deve estar de todo imberbe e filiado a uma comunidade qualquer onde se tecem cestos.

Reevoco os humores daquele tempo apenas para reconstituir o ânimo com que me aproximei da Garamond e me simpatizei com Jacopo Belbo. Cheguei para ele com o espírito de quem enfrenta os discursos sobre a verdade preparando-se para corrigir-lhe os rascunhos. Pensava que o problema fundamental, quando se cita Eu sou aquele que é, fosse decidir onde colocar o sinal de pontuação, se fora ou dentro do parêntese. Por isso minha escolha política foi a filologia. A universidade de Milão era naqueles anos exemplar. Enquanto em todo o resto do país as salas de aula eram invadidas e os professores agredidos, exigindo-se-lhes que só falassem da ciência proletária, entre nós, salvo algum incidente, vigia um pacto constitucional, ou bem um compromisso territorial. A revolução presidiava a zona externa, a aula magna e os grandes corredores, enquanto a Cultura oficial se havia retirado, protegida e garantida, para os corredores internos e os andares superiores, e continuava a falar como se nada tivesse acontecido». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Difel/JDACT

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