Efémere
«(…) Furtiva,
eu era hábil na arte de urdir. Mas, a pouco e pouco, fui-me apercebendo da música:
uma ária de Puccini, descobriria mais tarde. E encostada à parede do corredor,
reparei que debaixo da porta do escritório do meu pai havia uma lista de luz
solitária. Em bicos de pés aproximei-me, e sem ruído entreabri os batentes
apenas encostados, a descobri-lo, muito magro e moreno, sentado à secretária,
rodeado de cadernos e de livros, a preparar a aula que iria dar no dia
seguinte. Afastei-me, atordoada.
Lápis-Lazúli
Em contraluz e
falando devagar, modelando as palavras, a mãe disse: De ti não quero mais nada! Levo comigo a roupa do corpo e a nossa filha.
Pegou nela, fininha e atordoada, bibe de bordado inglês no peitilho a defender
o vestido de organdi cor de romã com mangas de balão enfunadas, pô-la debaixo
do braço e contornando o maple de veludo grená, começou a andar na direcção da
porta do escritório, enquanto em silêncio o pai, sentado à pesada secretária de
mogno diante dos cadernos de capa de oleado preto e dos livros sublinhados,
ficou imóvel, de uma palidez doentia, sem no entanto dar qualquer sinal do
arrepio que sempre provoca o ínvio encontro com a adversidade. A vê-la
afastar-se da sua vida: loura e esguia, olhos lápis-lazúli toldados pela morbidade
das pestanas, pernas altas à transparência da saia lilás, leve balancear das
ancas magras. E quando a mãe se voltou, um pouco antes de se perderem as duas
no escuro do corredor da casa, a menina, na sua posição inclinada de lado, por
segundos julgou vê-lo encolher-se como se temesse que elas regressassem.
Olhou o livro que o
pai tinha nas mãos magras, bonitas, em vez de tentar encontrar-lhe o olhar
cinzento esverdeado que sempre se distraía dela. Mal escondida atrás dos
cortinados de um tom dormente de pêssego aturdido, da janela do escritório, a
menina ouvia-os discutir, palavras que se misturavam no grito, delas entendendo
só a ameaça; gume e espelho a mostrar coisas terríveis que não queria ver nem escutar
por tanto a assustarem. Mas como de costume acabou por sair sorrateira do seu
esconderijo onde passava tardes inteiras, passo tímido a deslizar no chão
encerado, sapatos de verniz preto com presilha de abotoar no peito do pé com
botãozinho de lustro, para ir de manso encostar a face pálida à saia lisa e
travada da mãe.
Foi então que, num
arroubo esta a agarrou e a subiu ao peito apertando-a muito, olhar de hortênsia
subitamente fixo, para logo a derrubar nos braços a descê-la um pouco inclinada
até a pousar de novo no chão, embora aparentemente relutando no seu próprio
gesto inacabado, que ela acabou por quebrar num repente, súbito rompante
incontrolável, enquanto dizia, sem moderar a exaltação da voz: De ti não quero mais nada! Levo comigo a
roupa do corpo e a nossa filha. Depois, curvando-se, tornou a
agarrar nela, de braçado, miudinha de ossos e de carnes, aturdida no seu fatinho
de cassa de algodão de rosa da Abissínia, pô-la junto da anca fina, e num passo
nervoso mas decidido evitou a chaise longue de faia com estofo de damasco, roçou
ao de leve com o tornozelo o biombo lacado e, sem se voltar para trás em jeito
de saudade, deixou o escritório. Quando iam a caminho da porta da rua na
obscuridade do corredor, a menina que então se encontrava de lado, mas virada
para a maciez dos seios da mãe, reparou no brilho de lâmina dos seus olhos de
anil luzente. E encandeada, encolheu-se na tepidez da pele suada do braço
perfumado que a segurava, desviou a cara para a cintura delgada, lábios colados
ao cetim do vestido turquesa que, em vez de coar os odores do corpo da mãe, lhe
trazia intactas as essências frutadas, encrespadas, da sua carnação de loura». In
Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN
978-972-205-611-3.
JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, O Saber,