quinta-feira, 28 de abril de 2022

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «Cerrei os olhos e, num murmúrio, rezei em arménio. Quando acabei apercebi-me de que madame Duprés havia voltado ao quarto. Tinha os olhos vermelhos…»

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«(…) Pai?, sussurrei com a maior doçura de que fui capaz. Está a ouvir-me? Os olhos negros escorregaram na minha direcção e tive então a certeza de que se encontrava realmente desperto e me entendera. Encorajado, perguntei-lhe se se sentia bem. Tentou falar, ainda pronunciou uma sílaba, kr..., kri... , presumi que quisesse dizer o meu nome, mas tornava-se evidente que o esforço era demasiado penoso e, com um suspiro fatigado, desistiu. Disse-lhe que descansasse e não se preocupasse, ia correr tudo bem. Não sei se acreditou em mim ou se foi do cansaço, mas a verdade é que a seguir cerrou os olhos humedecidos e pareceu serenar. Dei um passo para o lado e deixei madame Duprés soprar-lhe umas palavras de ânimo a que ele voltou a não responder. A francesa ainda tentou persistir, mas de repente virou-se e fugiu dali com um gemido. Não era capaz de o ver naquele estado. Apercebi-me, talvez um minuto depois, de que ele reabrira os olhos e tentava de novo falar. Aproximei-me mais uma vez da cama, peguei-lhe na mão mortiça e fria e inclinei-me sobre ele, encostando o ouvido à boca trémula. Começou outra vez por balbuciar umas sílabas incompreensíveis, sons que não pareciam fazer sentido e que se soltavam nas pausas da respiração leve, mas inesperadamente saiu-lhe uma frase completa, na verdade uma pergunta lançada num só fôlego, como se ela reflectisse a essência da sua vida. O que é a beleza? Estas palavras enigmáticas suscitaram-me o maior dos espantos. O que é a beleza? O que raio quisera ele dizer com aquilo? Porque teria o meu pai gasto a sua escassa energia com uma irrelevância? Só podia ser o resultado de um delírio febril, o produto indesejado das elucubrações demenciais de um moribundo, pelo que ignorei a tão absurda pergunta e decidi questioná-lo sobre o seu estado. Quis saber se se encontrava bem, se desejava alguma coisa ou se podia fazer algo por ele, mas voltou a fechar as pálpebras e a deixar-me entregue à minha perplexidade. Enquanto reflectia naquela pergunta bizarra, senti-o remexer-se na cama. Imaginando que algo o incomodava, levantei prontamente o lençol para verificar se estava tudo bem. Foi nessa altura que ele alçou o braço debilitado e fez um gesto na direcção da cómoda. A seguir ouvi-o suspirar e o braço tombou, pendurado ao abandono na borda da cama. O doutor Fonseca abeirou-se dele e inspeccionou-lhe os olhos e a pulsação. Depois endireitou-se e, respirando fundo, encarou-me. Regressou ao coma, disse. Receio que o fim esteja iminente. Beijei o meu pai na fronte e depois afastei-me um passo.

Cerrei os olhos e, num murmúrio, rezei em arménio. Quando acabei apercebi-me de que madame Duprés havia voltado ao quarto. Tinha os olhos vermelhos, estivera de novo a morar. E contei-lhe o que se passara e perguntei-lhe o que haveria na cómoda de tão especial para merecer aquele último gesto dele. Os livros, disse ela. Queria decerto os livros. Quais livros? Um sorriso terno aflorou à face enrugada da velha senhora. Ele passou o último ano a escrever dois livros, não sabias? Contam a história dele. E a tua, já agora. A minha? Sim. Escreveu essa parte com base num diário teu que encontrou num baú. Riu-se com doçura. E sabes o que é curioso? Redigiu tudo na terceira pessoa, como se fosse alguém a contar a vossa história. Estava de tal modo entusiasmado que ainda rabiscou as últimas páginas do segundo volume na primeira vez que despertou do coma, vê lá! Desviei a atenção para a cómoda. Havia uma peça antiga de porcelana chinesa, um vaso com tulipas azuis e uma fotografia dele sentado à frente de uma estátua egípcia, provavelmente tirada em Lucsor, decerto no templo de Karnak. Onde estão esses livros? Madame Duprés chegou-se à cómoda e abriu a gaveta superior, de onde extraiu duas resmas de papel; eram, todas somadas, mais de mil folhas, um verdadeiro tijolo. Peguei nelas e folheei-as, impressionado com o volume; estavam dactilografadas e corrigidas a caneta com a letra inconfundível do meu pai. Percebi que teria muito para ler nos dias seguintes. Depois virei os maços compactos de papel e espreitei a primeira página da primeira resma, uma folha branca com uma única frase a cortá-la, evidentemente o título». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.

Cortesia de EGradiva/JDACT

JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, A Arte,