quarta-feira, 15 de março de 2023

A Herança de Rosa-Cruz. Jorge Durão. «Foi para nós um prazer tê-lo cá, e volte sempre. Muito obrigado por tudo, foram muito amáveis. Boa tarde, então, o sorriso da mulher acabou com a sucessão de despedida…»

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Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649

«(…) O Historiador tinha sobre a mesa de leitura uma pilha de seis livros, tendo começado por folhear a obra que a funcionária lhe havia entregue em mãos: O Tesouro Perdido de Óbidos, de Pedro José Gonzaga Morgado. Tratava-se do mesmo autor de Lendas e factos de Óbidos, livro de 1797. Contudo, aquele livro do Arquivo Distrital do Porto era ainda mais antigo, uma publicação de 1760. Uma folha anexa ao exemplar, colocada entre a capa e a guia, informava que o autor era nativo da vila de Óbidos, tendo feito carreira em Lisboa como especialista em Literatura Medieval. O pequeno folheto informava também que ao autor eram atribuídas duas publicações: O Tesouro Perdido de Óbidos, Lisboa, 1760; e Lendas e factos de Óbidos, Lisboa, 1797. Uma nota no final do folheto informava também que era o exemplar do Arquivo Distrital do Porto o único reconhecido e existente no país, não havendo rasto de mais exemplares e da segunda publicação do autor. Carlos Nóbrega sentiu os pêlos eriçarem-se. Palácio Nacional de Mafra! Era lá que parava um exemplar da segunda publicação! E estive tão perto de o ter! Tenho que encontrar aquele homem... Se ainda for vivo, claro!. O Historiador não pôde deixar de se surpreender com a leviandade com que este país trata a cultura e quem a faz. Como é que um livro daqueles pode ter sido negligenciado de tal forma?! Como pôde ficar à mercê de qualquer um na embrulhada das obras do palácio?!. Segundo a pequena sinopse de cada obra, o que estava presente no folheto, o primeiro livro do autor consistia no tratamento de uma lenda da vila de forma ficcionada, a lenda dos três alemães, tendo por base a disseminação de toda a produção oral da época; enquanto a segunda obra, certamente escrita com outra maturidade, note-se que se o primeiro livro tivesse sido escrito no auge dos seus trinta anos, o segundo teria sido escrito por volta dos seus setenta, era o resultado de uma exaustiva recolha de dados e informações de múltiplas fontes. Portanto, Lendas e factos de Óbidos era uma crónica da urbe entre os anos 1500 e 1700, entre os quais está a passagem pela vila dos três guardiões do manifesto Rosacruciano, entre outros tesouros.

O Historiador olha para o relógio. Eram na altura 11h20. Tinha uma hora e quarenta minutos para passar em revista aqueles exemplares. Começou então pelo volume que já estava aberto sobre a mesa, olhando de forma geral para a sala e percebendo que mais ninguém havia chegado. A funcionária estava ocupada com o computador, fixando o olhar para baixo. Conforme os olhos do Historiador iam percorrendo as linhas e as páginas, as suas expressões faciais alternavam entre a compreensão e a dúvida, apontado umas sucintas notas no seu pequeno bloco de apontamentos. Passados uns vinte minutos abandona aquele exemplar, começando a passar, na diagonal, os olhos pelos outros volumes que havia retirado do armário. Quando Carlos Nóbrega estava completamente envolto na leitura de uma parte final do penúltimo livro, um toque no ombro fá-lo dar um salto na cadeira.

Peço imensa desculpa, Dr. Nóbrega. Vamos fechar as portas dentro de dez minutos..., informa a funcionária, com uma certa pena por ter que interromper a leitura do Historiador. Se pretender, ainda pode digitalizar o que quiser num máximo de dez páginas... Eu é que peço desculpa. Não vai ser necessário digitalizar nada, obrigado. Eu ajudo-a a arrumar as obras, disse-lhe ele, solícito. Não é necessário, obrigada, refere a funcionária. Não, não! Faço questão! A leitura, a boa leitura, diga-se, é algo que sempre me fez perder a noção do tempo! O espaço deste livro continua no armário à sua espera, arrumo-lhe este e trago-lhe já a chave... Então obrigada, Sr. Doutor, autorizou a mulher que ele levasse a obra de volta à sua estante e ao seu lugar, enquanto ela pegara nos outros seis volumes e os levara de novo para o armário 11. É preciso mais alguma coisa?, pergunta o homem.

Mais nada, Dr. Nóbrega. Foi para nós um prazer tê-lo cá, e volte sempre. Muito obrigado por tudo, foram muito amáveis. Boa tarde, então, o sorriso da mulher acabou com a sucessão de despedida e contra despedida. Enquanto o historiador se despedia do jovem homem da recepção, a funcionária dirige-se ao espaço anexo, olha para o interior do armário e vislumbra no mesmo sítio a mesma castanha lombada. Olha para a chave que o Historiador lhe entregara e coloca-a no bolso, dirigindo-se para a primeira recepção do edifício, onde o homem ainda falava com o recepcionista. Já agora, o nome Bernardo Faria diz-lhes alguma coisa? Os dois funcionários olham um para o outro, numa expressão que respondia por si que nunca tinham ouvido tal nome. Poesia? Prosa? Arte?..., questiona a mulher. História... História. Não... Nunca ouvimos falar, diz a funcionária pelos dois. Mais uma vez muito obrigado. Obrigado nós, Dr. Nóbrega. Não, não. Obrigado eu. Disso podem ter toda a certeza...» In Jorge Durão, A Herança de Rosa-Cruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.

 Cortesia de JDurão/JDACT

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