«(…) A porta abriu-se de rompante e Maria Antónia São Boaventura Monteiro Paim entrou no quarto como um furacão. A avó surpreendeu Isabel Juliana sentada no estrado, afundada no vestido de noiva, toda dobrada, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a testa deitada na palma das mãos. Ela levantou a cabeça, lívida, e a avó teve a sensação de ver um fantasma. O que se passa consigo, menina? A neta fitou-a com os olhos marejados de profunda tristeza. Eu não quero casar, avô, implorou. Disparate, menina! Levante-se, que vai ficar toda amarrotada, ordenou-lhe no seu tom seco e frio.
E ela levantou-se logo, ainda que
desconcertada com a reacção da avô ao seu derradeiro e lancinante pedido de ajuda.
Maria Antónia, simplesmente, ignorou-o. E tinha boas razões para isso. Andavam naquele
braço-de-ferro há meses e não havia mais nada a debater sobre o assunto. Isabel
Juliana teria de casar nesse mesmo dia com José Francisco Carvalho Melo Daun, filho
segundo do conde de Oeiras, de 14 anos completados há dez dias.
A avó respirou fundo e acabou de lhe
compor o vestido com gestos práticos e enérgicos. Maria Antónia parecia ter uma
camada de gelo, não se lhe via uma emoção, mas essa aparente insensibilidade era
uma defesa. Debaixo daquela carapaça de inflexível devota havia medo. O marido faltara-lhe
há vinte anos e a responsabilidade da sobrevivência da família caíra-lhe inteiramente
nos braços. Tivera os seus momentos de pânico, era certo, mas o tempo apaziguara
a insegurança, dera-lhe experiência, tornara-a mais confiante. Ao final da tarde,
rezava sempre o terço no oratório da casa e, à noite, no silêncio trevoso do quarto,
conferenciava com o falecido marido, aconselhava-se com o seu Rodrigo. Estes dois
hábitos ajudavam-na muito a manter o controlo e a serenidade para tomar as decisões
mais difíceis». In Tiago Rebelo, A História do Bichinho-de-Conta, Edições ASA II, 2022,
ISBN 978-989-235-394-4.
JDACT, Tiago Rebelo, Literatura, História, Século XVIII,