sábado, 4 de março de 2023

A Sala das Perguntas Fernando Campos. «… pôde apreciar, assim de perto, a mais ínfima semelhança do rei com o cunhado, as mesmas feições, a mesma estatura, tamanho de braços e pernas, cor do cabelo e dos olhos…»

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«(…) Não fosse o vestuário, a seda, o brocado, as telas de ouro, Ana diria que Rui Dias havia ressuscitado. Percebia agora a razão por que seu cunhado sempre tivera o cuidado minucioso de usar roupas não costumadas e sobretudo, quando casou com a senhora de Limi, vestimentas à maneira da Flandres. Queria estremar-se da figura real, quanto mais não fosse para calar as impertinentes chufas dos seus conhecidos, que chegavam ao ponto de lhe chamarem, na galhofa, el-rei Sabão.

A segunda vez que vira o rei fora num serão na corte. Música de charamelas, sacabuxas, cornetas, harpas, tamboris e rabecas tangiam cada um por seu giro músicos mandados vir de fora do reino, além de mouriscos que cantavam ao som de alaúdes e pandeiros. Dançavam damas e galantes, bailavam donzelas e moços fidalgos. El-rei vinha entrando, abriam alas damas e senhores, detinha-se às vezes a falar com uns e outros. Pára diante dela, depois de escutar o que ao ouvido lhe segredava o secretário. Conheço muito bem a tua casa em Santarém, disse, e ainda me lembro de teu pai, teria eu uns dez anos. Muita honra, senhor, balbuciou Ana muito corada. Quando el-rei se afastou e ela sossegou da emoção, pôde apreciar, assim de perto, a mais ínfima semelhança do rei com o cunhado, as mesmas feições, a mesma estatura, tamanho de braços e pernas, cor do cabelo e dos olhos, o sorriso, a não ser… não, aquela voz clara e bem entoada não era a voz de Rui Dias. Mas havia uma outra coisa em que eram parecidos: ambos haviam casado uma porção de vezes e, se bem que o cunhado fosse ligeiramente mais velho que el-rei, casamentos e nascimento de filhos seguiram quase a par.

Magna caterva de filhos tivera o rei Emanuel. Depois de subir ao trono, propôs aos reis da vizinha Castela casar com a princesa Isabel. Aplaudiram-no os conselheiros, aceitaram com júbilo Fernando e Isabel, pais da princesa. Continuação da política do sábio rei anterior de consolidar a paz entre os dois povos. Mas não faltaram vozes que acrescentavam de outro jeito a resolução real: Então não era de esperar? Já vos não lembrais dos olhos que em Évora ele deitava à princesa quando ela veio para Portugal a casar com o príncipe Afonso que Deus haja? Amor que vinha de trás, de menino e moço, aquando das terçarias». In Fernando Campos, A Sala das Perguntas, Difel 82, 1998, ISBN 972-290-437-X.

Cortesia de Difel/JDACT

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