segunda-feira, 27 de março de 2023

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «mentira e maldade non lhis dá logar; estas son nadas e criadas e aventuradas e queren reinar. As nossas fadas iradas»

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 Cantigas de Escárnio e Maldizer

«(…) Ao agruparmos cantigas de escárnio e maldizer, não procurámos saber, antes, como os outros tinham feito. Só depois. E assim, ora coincidimos pela força dos textos, ora nos metemos por caminhos diferentes, devido a critérios e gostos diversos. Abrimos pelas sátiras de alcance ecuménico e que podem cifrar-se nesta frase dos velhos de agora: Os tempos vão maus!

Sátiras dos Tempos Maus

Joan Soárez Coelho troça cruelmente de João Fernandes, com feições de mouro, por a mulher ser amiga dum escravo. Na cantiga seguinte, insiste neste caso, mas alarga a sátira à história daquele tempo: Anda perturbado o mundo, João Fernandes. O Imperador levantou-se contra Roma, vieram os Tártaros e, agora, vemos-te com intenção de abalar para a Terra Santa. Ora, nas profecias do fim do mundo, é este um dos quinze sinais: andar o mundo baralhado e o mouro fazer-se cruzado. João Fernandes, acreditai em mim, que sou bom letrado! É sinal de já ter nascido o Anticristo.

Martin Moxa, por seu lado, também fala, dos tempos do Anticristo. Há guerras, injustiças, ambições e falta o juízo, e a mesura. Hospital ou igreja, romeiro, fidalgo ou religioso, tudo é desrespeitado, por bom que seja. Forçam as mulheres, roubam nos caminhos, não temem alcaides nem meirinhos, antes acham sempre quem os proteja. Ninguém defende os agricultores, as vinhas e as herdades ficam por cultivar, não há com que pagar as rendas e perdem-se as honras. É um serventês moral bem digno do visionarismo de Martin Moxa, sério e pensativo, embora mordaz e sarcástico. Segundo Lang, compôs ele estas poesias em tempo del-rei Sancho II. Para ele, anda o mundo cada vez pior. Descem os bons e os maus levantam-se poderosamente acima deles. Por mim, diz o poeta, non ei da mia morte pavor. O mundo caminha às avessas e tudo nele anda trocado!

Por isso, não deve fugir da morte quem viu o bem que dantes era e vê o mal de hoje. Bem-aventurados os que morrerom mentr’ era melhor! Que eles dêem graças a Deus. Os que ficarem verão coisas ainda piores: e poren tenh’eu que faz sen-razon / quen deste mundo á mui gran sabor. A este queixume, segue-se outra sátira amarga, quase uma invectiva em forma de descordo: Fico-me a olhar e tudo me dá coita e pesar. Reina a mesquinheza acima da grandeza de alma. Reinam manhosamente neste mundo a maldade e a mentira:

mentira e maldade

non lhis dá logar;

estas son nadas

e criadas

e aventuradas

e queren reinar.

As nossas fadas

iradas

foron,...» 

In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,