A casa Tellier
«(…) Acontecia que a Madame tinha um irmão estabelecido como marceneiro na sua terra
natal, Virville, no Eure. No tempo em que a Madame era ainda estalajadeira em Yvetot fora ela que levara à pia
baptismal a filha daquele irmão, a que deu o nome de Constance, Constance
Rivet, pois ela própria era Rivet pelo lado do pai. O marceneiro, que sabia que
a irmã estava numa boa situação, não a perdia de vista, embora não se
encontrassem muitas vezes, ambos retidos que estavam pelas respectivas
ocupações e, além disso, por viverem longe um do outro. Mas, como a menina ia
completar doze anos e nesse ano fazia a sua primeira comunhão, ele aproveitou a
oportunidade para promover uma aproximação, e escreveu à irmã que contava com ela
para a cerimónia. Os velhos pais tinham morrido e ela não podia recusar aquilo
à afilhada: aceitou. O irmão, que se chamava Joseph, esperava que, valendo-se
destas atenções, talvez conseguisse um testamento a favor da pequena, já que a Madame não tinha filhos.
A profissão da irmã não bulia de modo
algum com os seus escrúpulos e, aliás, ninguém lá da terra sabia de nada. Ao
falar dela dizia-se apenas: A senhora Tellier é uma burguesa de Fécamp, o que
dava a entender que estava em condições de viver dos rendimentos. De Fécamp até
Virville distavam pelo menos vinte léguas; e vinte léguas de terra são, para
camponeses, mais difíceis de percorrer que o Oceano para um civilizado. O povo
de Virville nunca tinha ido além de Ruão; e nada atraía as gentes de Fécamp a uma
aldeola de quinhentos fogos, perdida no meio das planícies e que pertencia a
outro departamento. Enfim, não se sabia de nada.
Mas, ao aproximar-se a época da
comunhão, a Madame sentiu um grande embaraço. Não tinha nenhuma patroa
substituta e não lhe agradava nada deixar a casa, mesmo por um dia. Todas as
rivalidades entre as damas lá de cima e as lá de baixo iriam infalivelmente
estalar; além disso, o Frédéric havia de embebedar-se de certeza, e quando
estava bêbado importunava as pessoas por tudo e por nada. Acabou por se decidir
a levar consigo toda a sua gente, excepto o criado, a quem deu férias até dali
a dois
dias.
Consultado o irmão, este não levantou
qualquer objecção, e encarregou-se de arranjar alojamento para todo o grupo por
uma noite. E assim, no sábado de manhã, o comboio expresso das oito
transportava a Madame e as suas companheiras numa carruagem de segunda classe.
Até Beuzeville foram sozinhas e
palraram como pegas. Mas nessa estação entrou um casal. O homem, um velho
camponês que envergava uma bata azul com gola plissada, mangas largas apertadas
nos pulsos e adornadas de um bordadinho branco, de cabeça coberta por um
antiquado chapéu alto cujo pêlo ruço parecia eriçado, trazia numa das mãos um
imenso chapéu-de-chuva verde, e na outra um grande cesto donde espreitavam as
cabeças assustadas de três patos. A mulher, hirta na sua roupagem rústica,
tinha cara de galinha, com um nariz afilado como um bico. Sentou-se de frente
para o seu homem e deixou-se ficar sem se mexer, impressionada por se encontrar
rodeada de uma tão bela companhia.
Com efeito, a carruagem era um
deslumbramento de cores brilhantes. A Madame, toda de azul, de seda azul dos pés à cabeça, trazia por cima um
xaile de falsa casimira francesa, vermelho, ofuscante, fulgurante. A Fernanda
ofegava num vestido escocês cujo corpete, atado com todas as forças das
companheiras, lhe soerguia o peito em riscos de se desmoronar numa dupla cúpula sempre agitada que parecia líquida debaixo do
tecido». In Guy
Maupassant, Contos Escolhidos, 1885, Edições don Quixote, Grupo Leya, 2011,
ISBN 978-972-204-682-4.
Cortesia de EdonQuixote/JDACT
JDACT, Guy Maupassant, Contos, Século XIX, Escrita,