quarta-feira, 15 de março de 2023

Contos Escolhidos. Guy Maupassant. «Com efeito, a carruagem era um deslumbramento de cores brilhantes. A Madame, toda de azul, de seda azul dos pés à cabeça, trazia por cima um xaile de falsa casimira francesa, vermelho…»

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A casa Tellier

«(…) Acontecia que a Madame tinha um irmão estabelecido como marceneiro na sua terra natal, Virville, no Eure. No tempo em que a Madame era ainda estalajadeira em Yvetot fora ela que levara à pia baptismal a filha daquele irmão, a que deu o nome de Constance, Constance Rivet, pois ela própria era Rivet pelo lado do pai. O marceneiro, que sabia que a irmã estava numa boa situação, não a perdia de vista, embora não se encontrassem muitas vezes, ambos retidos que estavam pelas respectivas ocupações e, além disso, por viverem longe um do outro. Mas, como a menina ia completar doze anos e nesse ano fazia a sua primeira comunhão, ele aproveitou a oportunidade para promover uma aproximação, e escreveu à irmã que contava com ela para a cerimónia. Os velhos pais tinham morrido e ela não podia recusar aquilo à afilhada: aceitou. O irmão, que se chamava Joseph, esperava que, valendo-se destas atenções, talvez conseguisse um testamento a favor da pequena, já que a Madame não tinha filhos.

A profissão da irmã não bulia de modo algum com os seus escrúpulos e, aliás, ninguém lá da terra sabia de nada. Ao falar dela dizia-se apenas: A senhora Tellier é uma burguesa de Fécamp, o que dava a entender que estava em condições de viver dos rendimentos. De Fécamp até Virville distavam pelo menos vinte léguas; e vinte léguas de terra são, para camponeses, mais difíceis de percorrer que o Oceano para um civilizado. O povo de Virville nunca tinha ido além de Ruão; e nada atraía as gentes de Fécamp a uma aldeola de quinhentos fogos, perdida no meio das planícies e que pertencia a outro departamento. Enfim, não se sabia de nada.

Mas, ao aproximar-se a época da comunhão, a Madame sentiu um grande embaraço. Não tinha nenhuma patroa substituta e não lhe agradava nada deixar a casa, mesmo por um dia. Todas as rivalidades entre as damas lá de cima e as lá de baixo iriam infalivelmente estalar; além disso, o Frédéric havia de embebedar-se de certeza, e quando estava bêbado importunava as pessoas por tudo e por nada. Acabou por se decidir a levar consigo toda a sua gente, excepto o criado, a quem deu férias até dali a dois dias.

Consultado o irmão, este não levantou qualquer objecção, e encarregou-se de arranjar alojamento para todo o grupo por uma noite. E assim, no sábado de manhã, o comboio expresso das oito transportava a Madame e as suas companheiras numa carruagem de segunda classe.

Até Beuzeville foram sozinhas e palraram como pegas. Mas nessa estação entrou um casal. O homem, um velho camponês que envergava uma bata azul com gola plissada, mangas largas apertadas nos pulsos e adornadas de um bordadinho branco, de cabeça coberta por um antiquado chapéu alto cujo pêlo ruço parecia eriçado, trazia numa das mãos um imenso chapéu-de-chuva verde, e na outra um grande cesto donde espreitavam as cabeças assustadas de três patos. A mulher, hirta na sua roupagem rústica, tinha cara de galinha, com um nariz afilado como um bico. Sentou-se de frente para o seu homem e deixou-se ficar sem se mexer, impressionada por se encontrar rodeada de uma tão bela companhia.

Com efeito, a carruagem era um deslumbramento de cores brilhantes. A Madame, toda de azul, de seda azul dos pés à cabeça, trazia por cima um xaile de falsa casimira francesa, vermelho, ofuscante, fulgurante. A Fernanda ofegava num vestido escocês cujo corpete, atado com todas as forças das companheiras, lhe soerguia o peito em riscos de se desmoronar numa dupla cúpula sempre agitada que parecia líquida debaixo do tecido». In Guy Maupassant, Contos Escolhidos, 1885, Edições don Quixote, Grupo Leya, 2011, ISBN 978-972-204-682-4.

Cortesia de EdonQuixote/JDACT

JDACT, Guy Maupassant, Contos, Século XIX, Escrita,