Cortesia de assirioealvim
Um poema, Iniji, que não é como os outros
(J.M.G. Le Clézio)
«Interrogamo-nos acerca da poesia? Desejaríamos saber o que pretende ela, aquilo que pretende de nós. É que muitas vezes não nos diz nada. Palavras, fragmentos de frases, balanceadas, hesitantes, versáteis, palavras que não conseguimos reter.
Estribilhos de canções, talvez? Mas então onde está a música? Talvez músicas silenciosas, tocadas no fundo da água, a cem braças de profundidade. Os outros poemas, todos os poemas célebres, organizados, compostos, exércitos em armas que marcham a passo certo. Não estamos lá quando passam. Viramos a cara, vamos procurar noutro lado. Em geral, quando passavam, esses grandes poemas, havia um extremo vazio, um intenso vazio, o medo, o cansaço, e era a ele que preferíamos.
Ou ainda outros poemas, que falavam de coisas graves, insultavam, blasfemavam. Faziam um grande barulho de trovão, e nós, pequenos homens fracos que não gostávamos de tempestades, metíamos a cabeça entre os ombros, à espera de que aquilo passasse.
Os gritos e os insultos, não, isso não era para nós. Cada vez mais poemas, sempre, nos livros. Fileiras de linhas, frases cortadas, em suspenso, nas páginas brancas... Mas olhávamos esse branco das páginas e, de longe, as cristas dos maciços verticais; árduas colinas de que não queríamos aproximar-nos, estavam bem onde estavam, de longe, ao longe.
Cortesia de meditacaonapastelaria
Diziam coisas, esses poemas, e ao mesmo tempo não diziam nada. Palavras voltejantes, não iam a parte nenhuma, sem força, sem duração, sem memória, lidas vagamente, abandonadas depois. Criavam o seu próprio rumor, dispensando ouvidos, zumbir de abelhas invisíveis. Líamos aqui uma palavra, ali outra, e tínhamos dificuldade em ligá-las, pois eram palavras sem raízes, não viviam, pareciam conchas vazias; podia fazer-se com elas um colar.
Agora, depois de Iniji, já nos náo interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa, seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado ouvido para escutar a musica do fundo da água.
Não é como os outros, este poema, não distrai, não se esquiva. Na verdade não está escrito, encontra-se ali na página por “acidente”, e deve estar também algures, gravado numa árvore, por exemplo, ou inscrito na terra seca, ou tatuado então na pele humana. Claro que não está apenas escrito. Passou pelo tremor da escrita, foi assim que apareceu primeiro. Mas não existe somente nesse tremor, não existe somente para os olhos.
Cortesia de wikipedia e almariada
Existe algures, em volta, no ar, nas nuvens, na folhagem das árvores vistas à distância, no mar, na erva calcada de uma pista. E nas ruas de uma grande cidade, entre as paredes dos prédios, acompanhando o movimento dos automóveis, os cláxons, as luzes, a multidão.
Deve lá estar há muito tempo pois, quando o lemos, reconhecemo-lo imediatamente. Não o procurávamos, nem procurávamos sequer o nome de um autor. Íamos ao seu encontro sem saber, e ele vinha ao nosso encontro seguindo o seu curso de cometa que se aproxima, roça e desaparece. Há tanto malfadado saber que turba, perturba. Estas palavras, todas as palavras inquinadas e falsas, inflamando, obstruindo as mucosas, impedem que o ar chegue até nós. Tantas palavras: tantas paredes.
Mas existem outras palavras libertadoras, e não entendemos porquê. Não são as mesmas? Não são, elas também, linguagem dos homens? Chegam facilmente, sem as procurarmos, são leves, não pedem nada, não oprimem. Palavras aéreas, suspensas no céu branco em esquadrilhas imóveis. São elas que vemos, agora, só elas. Como se pôde inventar uma linguagem assim? Gostaríamos de acreditar que se trata de miragem, de acaso, e sabemos que não é simples coincidência». In As Magias, Herberto Helder, Poemas mudados para Português, Assírio & Alvim, edição 0257, 2010, ISBN 978-972-37-0086-2.
Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT