quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Leituras. Parte XXXI. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. O Besouro. «Tinham acompanhado o trabalho de remoção das madeiras, acompanhando os homens ao pinhal de Leiria, nos contrafortes baixos da cidade, e ajudando a decapitar algumas árvores das mais antigas, certamente anteriores ao próprio reinado do rei D. Dinis. Era um trabalho que era feito no meio de fortes berrarias, em que os homens cantavam quase, tanto como os machados»

Cortesia de costapinheiro

O Besouro
«Tinham, estas mulheres, peitos batidos, mas tenazes, escuros, que o leite tornava ainda rijos e direitos. Alimentavam todos os anos um filho e sentavam-se nas leiras do paço provincial a debulhar a fava. Desde o berço que se habituaram a ver nesse infante, loiro como o pai, onde corria ainda abundantemente o sangue de Borgonha misturado aos últimos resíduos godos, um ser que lhes era próximo e no qual podiam confiar. Muita da futura afeição popular de que este rei há-de depois gozar está já, visceralmente, aqui.
Brites, mãe do infante, irmã de Fernando IV de Castela e mulher de Afonso de Portugal, recebeu Branca no paço de Santarém, onde a deixou ficar uma semana, na esperança de que ela melhor se adaptasse aí do que em Lisboa. Santarém, com os seus pequenos penhascos sobre o rio, a sua várzea pequena mas intensa, os seus arredores cheios de oliveiras e de lagares, podia ser ainda uma continuidade, ainda que final, da meseta castelhana. Em Santarém o cheiro da maresia é ainda despercebido e os pequenos barcos do rio podem por vezes lembrar aqueles outros que é possível encontrar nas partes baixas de Toledo, ao pé dos laranjais. Branca de Castela era uma menina de nove anos, que devia aguardar até ao ano de 1334 ou 1335 para se unir matrimonialmente ao infante Pedro.

No mês de Novembro de 1328 o infante Pedro estava na Tauguia, ou Atouguia, onde a bela igreja de S. Leonardo data, pelo menos, da fundação da nacionalidade. A igreja de S. Leonardo é um desses monumentos que a tradição transformou, pela sua antiguidade, em lugar intemporal de culto, atribuindo-lhe antepassados godos e depois árabes. O templo ficava, nessa época, junto do pequeno ancoradouro das barcas e toda a vila respirava um crepitar marinho, que as gaivotas ajudavam, com os seus gritos crepusculares, a criar. O porto da Atouguia, que não se confundia com o ancoradouro das barcas ao pé da igreja de S. Leonardo, era amplo e servia não só para a pesca, mas sobretudo para exportação de vinhos, sal e outras mercadorias vindas do interior, mormente de Leiria.
 
Cortesia de wikipedia

O porto ficava a umas centenas de metros do largo da igreja de S. Leonardo, onde se abriam, sobre o lado norte da igreja, as escadarias de pedra tosca do paço real, mandado construir por D. Dinis. Esse porto era um dos mais importantes de então e tinha um papel, a todos os títulos notável. Ia-se para a vila através dum caminho de areia, passando por dunas baixas onde uma vegetação rústica de urzes e camarinhas nascia todos os anos. Navegava-se também até á própria vila por um braço de água amplo, que era conhecido pelo rio da Lagoa, e que ligava o porto de mar ao ancoradouro das barcas. Nas margens deste braço líquido de água, de que ainda hoje restam vestígios nos arredores da vila de Atouguia da Baleia, havia, por entre as camarinhas e as urzes, embarcações de madeira, toscamente construídas nos estaleiros da vila. Eram chatas de remos, próprias para pescar na costa, que os homens depois puxavam para a areia, deitando-se à sua sombra, enquanto as mulheres na vila os esperavam com os braseiros do peixes acesos. Eram homens de olhos claros, tez geralmente encardida mas rosada, homens que tinham, duas ou três gerações antes, chegado com o primeiro alcaide-mor da vila.

É letra do foral da Atouguia, passado em tempos de Sancho I, quando os borguinhões se aventuravam cada vez mais para sul, dominando por inteiro o vale do Tejo, que o primeiro alcaide-mor da vila, confirmado já nos tempos do fundador, era Guilherme de Corni, um fidalgo franco. A colonização dos territórios ocupados era feita em geral, nesses primeiros tempos, com esses filhos segundos duma Europa feudal, que acorriam à Península à procura de fortuna.
Com eles vinham peões e até gente sem carta de qualquer espécie, disposta apenas a combater. A Atouguia cresceu assim como uma colónia de homens de olhos azuis, que davam a si mesmos e à família que os rodeava o apelido, ainda hoje tão comum na região, de Franco. Enraízavam-se, porém, sem se darem conta disso, mais no presente e até no futuro, um futuro próximo, do que propriamente no passado.

Cortesia de wikipedia

Quimper, Corny, Poitu, Clermont-Ferand e mesmo Bourges e Tours ficaram definitivamente para trás na história dessas famílias, que adoptavam outros hábitos à medida do meio, ainda que, por tradição, eles próprios e os seus descendentes festejassem pontualmente, em 6 de Novembro, 'S. Leonardo, o eremita nascido em Noblac, França, e que deu o nome não só à igreja matriz do Conselho, como até a muitos dos hábitos e costumes da região.

O infante Pedro habituou-se desde muito novo à Atouguia e quando Branca de Castela chegou a Portugal encontrava-se ele entretido a participar na forja do ferro que alimentaria algumas das dobradiças das pequenas caravelas que se começavam, por esses anos, a construir. Eram barcos ligeiros, que, muito deviam aos calafates árabes da Península, muito particularmente àqueles que estavam nos portos portugueses do litoral, e que permitiam uma mobilidade compatível com uma tonelagem já elevada: cinquenta tonéis aproximadamente.
Tinham acompanhado o trabalho de remoção das madeiras, acompanhando os homens ao pinhal de Leiria, nos contrafortes baixos da cidade, e ajudando a decapitar algumas árvores das mais antigas, certamente anteriores ao próprio reinado do rei D. Dinis. Era um trabalho que era feito no meio de fortes berrarias, em que os homens cantavam quase, tanto como os machados. Sentavam-se depois no fim da manhã a comer pão com sardinha ou com presunto e regressavam à noite acompanhando os carreteiros que lhe levavam pelos caminhos os troncos de maior diâmetro. O trabalho de remoção das madeiras tinha demorado toda uma estação, porque as chuvas no Verão desse ano impediram dias e dias seguidos o trabalho. Depois de secas, as madeiras eram aplainadas nos estaleiros que ficavam na duna da Atouguia. Agora preparavam-se já os esqueletos das futuras embarcações, enquanto as mulheres, geralmente miúdas e delgadas, trabalhavam na fiação das velas». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310, Depósito Legal nº 33344/90.

Cortesia de PE América/JDACT