quarta-feira, 29 de abril de 2015

Ciência e Experiência. Ensaio sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel. Moura Barbosa. «Assim, a própria ideia de Cosmo ou Universo se transforma. Se há algo a ser investigado e extraído de seu interior, só pode ser através da matemática»

Cortesia de wikipedia

«(…) Ora, a relação entre espírito e natureza sofreu uma radical transformação com a passagem do mundo antigo para o moderno. Antes, os gregos uniam-se numa razão objectiva no interior do Cosmo. Como ressalta Hegel, esta relação passou, na modernidade, a se caracterizar essencialmente pela duplicação da realidade, tornando-se esta, de um lado, ideia subjectiva e, de outro, o substancial. Ora, essa cisão reflectiu também na contraposição entre a subjectividade e a objectividade, ou, ainda, entre o pensamento e o ser e, por fim, entre o próprio espírito e a natureza. Com isto, ocorreu uma mudança fundamental no conceito de Natureza, com a tematização da subjectividade, algo diluído na antiguidade, como princípio agora de uma autoconsciência. Hegel caracteriza essa transição como uma grande navegação, uma descoberta de um continente desconhecido, no qual o homem, depois de transpor o mar turbulento de seus pensamentos, chega, enfim, e pode dizer: terra!. Assim, tal pensamento chega à sua autoconsciência, enquanto cogito em Descartes. Para Hegel: com Descartes começa, com efeito, verdadeiramente, a cultura dos tempos modernos, o pensamento da moderna filosofia, depois de haver marchado durante largo tempo pelos caminhos anteriores. Com essa nova configuração da racionalidade, todo o conhecimento humano sofreu uma alteração fundamental: o homem não seria um espectador passivo do Cosmo, como outrora, porém detentor, doador e ordenador do sentido do mundo. A contemplação deu lugar à acção investigativa da natureza, em que esta deixa de ter uma ordem própria, passando a ser réu no tribunal da razão. A razão julga sobre o mérito da verdade do conhecimento acerca da natureza, se os modelos do nosso entendimento são ou não adequados para a representação desta, o que coloca a ideia de um domínio cada vez mais eficaz sobre ela. A ideia de uma tal racionalização segue o desenvolvimento de uma questão que perpassa toda a modernidade (dos empiristas aos racionalistas, dos realistas aos idealistas), qual seja o facto de que compreenderam (Galileu e Stahl) que a razão só discerne o que ela produz segundo os seus projectos. Desta maneira, os modernos constituem a sua distinção em relação aos antigos, como vai afirmar Kant: até agora se supôs que todo o nosso conhecimento se tinha que se regular pelos objectos, mas, ao invés disso, tente-se ver uma vez se não progrediremos melhor nas tarefas da Metafísica, admitindo que os objectos têm que se regular pelo nosso conhecimento.
Tal posição foi denominada por Kant de revolução copernicana do pensar, em que fica evidente que o mundo não é e não pode ser algo independente do sujeito cognoscente, mas determinado e condicionado por este, tornando mais explícito que a razão só conhece aquilo que põe, e a razão moderna põe o mundo como seu objecto. Essa tendência não é de forma alguma algo isolado a Kant. Pelo contrário, ele é a expressão máxima dessa posição moderna do sujeito cognoscente na modernidade. As ciências modernas tiveram papel importante nessa transformação da perspectiva cosmológica para a antropológica (epistémica), que ocorreu com a mudança conceitual do ponto de vista acerca da natureza. Para os antigos, a natureza tinha o sentido de um todo qualitativamente organizado de forma objectiva, por uma razão que o perpassava; destarte, só restaria ao homem certa atividade contemplativa. Já para os modernos, essa natureza constitui-se em inteligível com base em sua quantificação matemática. A própria ideia de um Cosmo limitado, pois o belo, para os gregos, é o que possui limites, dá lugar ao infinito quantitativo do Universo. Assim, a própria ideia de Cosmo ou Universo se transforma. Se há algo a ser investigado e extraído de seu interior, só pode ser através da matemática. Com isso, tornou-se necessária a elaboração de um método que permitisse tal investigação; tal método foi denominado de procedimental, por estabelecer procedimentos para validação das investigações, ou experimental, por ter na experiência a sua fonte de conteúdo e validação, e as ciências que o utilizam, de ciências experimentais. O método procedimental das ciências experimentais precisava de uma sustentação teórica para a conceitualização de tal posição frente ao seu conhecimento sobre a natureza. A filosofia fundamentou tal procedimento no seu plano metafísico e teórico e buscou, ainda, pesquisar se a investigação dá conta ou não do seu objecto, que é a natureza. A filosofia moderna constitui-se, deste modo, enquanto uma teoria do conhecimento ou ainda epistemologia». In Alexandre Moura Barbosa, Ciência e Experiência, Ensaio sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel, Editora Universitária, Edipucrs, Porto Alegre, 2010, ISBN 978-85-7430-970-5.

Cortesia de EUniversitária/JDACT