sábado, 11 de abril de 2015

Incertezas do Coração. Maggie O’Farrell. «… vai adquirindo, pouco a pouco, insidiosamente, contornos cada vez mais compulsivos, até se transformar numa obsessão doentia, febril, que toma conta de todo o seu ser e ameaça levá-la à loucura»

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«Ela sai do táxi, empurra a porta de metal, agarra nos cigarros, no troco e nas hastes espinhosas das rosas. Sarah diz-lhe qualquer coisa do outro lado do táxi e ela dá meia-volta. Quando se apercebe de que o seu pé ficou preso na curva granítica do passeio, já é demasiado tarde e, logo em seguida, cai para trás num voo forçado. Lily vê o mundo a girar no seu eixo, o cabelo, mais leve do que ela, passa a esvoaçar em frente ao seu rosto e os seus dedos derramam rosas e moedas circulares que rodopiam no chão. À medida que cai em arco, ela vê um homem, a caminhar no passeio na sua direcção. Ele parece-lhe ser, naquela fracção instantânea de segundo, daquela espécie de pessoa que raramente se encontra sem outras pessoas. Ele caminha com uma ênfase peculiar, como se estivesse a tentar imprimir a sua imagem no ar. Em seguida, o betão e o cascalho estalam contra o corpo dela, e Lily sente a pele das suas mãos a ser esfolada. Ao sentir o toque de dedos, cingidos como hera em torno da sua manga ela olha para cima. Os olhos dele são de um azul surpreendente e ambíguo. As flores acabam esmagadas sob o corpo dela, ficando o pigmento amarelo infiltrado nas suas roupas. Ele está a ajudá-la a levantar-se, está a falar com ela, a perguntar-lhe se ela está bem, se se magoou. As mãos dela parecem-lhe estar escaldadas, cruas e, quando as contempla, vê gotas de sangue a emergirem da pele em filas ordenadas. Em seguida, Sarah consegue dar a volta ao táxi e está a segurá-la pelo braço, comprimindo lenços de papel contra os arranhões dela e agradecendo ao homem. Quando Lily olha para trás, ele já desapareceu. Meu Deus, diz Sarah, olhando para Lily. Estás bem? Sim, responde ela, agora já a rir, embaraçada. Estou óptima. Não sei o que me aconteceu. E atravessam ambas o ar da noite, em direcção à festa, onde o pulsar monótono e repetitivo da música força as paredes do edifício. Lá dentro, as salas e os corredores estão apinhados de gente e carregados de nuvens espessas de fumo. É a inauguração da exposição de uma amiga de Sarah, mas ninguém está a contemplar as peças de arte, pinturas foto-realistas de pessoas e animais a serem consumidos pelo fogo. Lily sente que devia esticar-se até ao tecto, onde talvez haja mais ar. As suas mãos feridas estão mais sensíveis, descascadas como ovos. Deixa Sarah na sala principal a conversar com uma rapariga que traz um vestido turquesa. O vestido é debruado a pele, uma pelagem sedosa e frágil que se cola como algas marinhas à humidade da pele da rapariga. As pessoas parecem ser todas do mesmo tipo, ou então trazem todas a mesma espécie de uniforme. As mulheres são pequenas e com um charme algo masculino: magras, cabelo curto e olhos circundados com lápis. Os homens são vistosos, enchendo as suas roupas generosamente e segurando nos cigarros entre os dedos grossos. Talvez seja devido à queda ou à dor nas mãos, mas Lily não consegue ultrapassar o facto de todos parecerem distantes, como se os estivesse a contemplar pelo lado errado de um telescópio. Na mesa das bebidas, pega num copo de plástico com um ar frágil e enche-o de vinho pálido e ácido. Ao seu lado, uma mulher está a abanar-se vigorosamente com o catálogo da exposição, tendo a borda do seu copo ficado manchada com um simulacro dos seus lábios dum tom carmesim agressivo. Segurando na sua bebida acima da cabeça, LiIy começa a forçar caminho por entre os grupos de pessoas, ouvindo trechos entrecortados das suas conversas, e caminhando na direcção das costas e dos ombros de um homem que ela conhece. Ouve o atrito das suas calças pretas de bombazina à medida que as pernas se movem debaixo de si, o som da fricção secreta do veludo. Tivera um namorado que era obcecado por estas calças. Uma mão precipita-se por entre a multidão e agarra-lhe no braço. Tem a pele castanha, os dedos tortos e as unhas prateadas. LiIy fica a olhar para ela, surpreendida, depois inclina-se, contornando as costas de uma mulher entroncada com o cabelo espetado, e vê Phoebe, a amiga de Sarah que trabalha na galeria. Olá, cumprimenta ela. Como tens passado? Vem para aqui conversar connosco, incita-a Phoebe. As escoriações nas palmas das mãos e nos pulsos de Lily doem-lhe, ameaçando rebentar. Este é o meu primo, Marky Mark. Phoebe desvia-se e Lily vê o homem que a tinha levantado do passeio. Phoebe ergue a mão, estendida, com a palma voltada para cima. Esta é a Lily. Lily dá um passo em frente. Ele parece diferente sob esta luz. A sua camisa, com um padrão agitado, está enrolada nas mangas, uma mais para cima do que a outra, o que lhe permite observar a linha do bronzeado dele. A curva do bíceps é pálida, leitosa, enquanto os seus antebraços são de um castanho pronunciado. Os dedos dele estão manchados com tinta verde, e ele tem o calcanhar do sapato direito equilibrado sobre a biqueira do esquerdo. Marky Mark?, repete ela, quando já, se encontra suficientemente próxima para ele a ouvir. É um nome muito estranho. É Marcus, murmura ele, elevando o seu brilhante olhar azul, de forma a encontrar-se com o olhar dela». In Maggie O’Farrell, 2002, Incertezas do Coração, tradução de Maria Almeida, Editorial Presença, Lisboa, 2005, ISBN 978-972-23-3412-9.

Cortesia de EPresença/JDACT