domingo, 26 de abril de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «As ramificações eram demasiadas para que uma única voz pudesse ecoar. Assistia-se, sim, à propaganda agitadora com eco significativo na fúria das populações contra os conversos»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Apesar da grande antipatia pela nova religião, Procuraram nunca desrespeitar os seus preceitos. Para eles, a grandeza reside no respeito, independentemente das adversidades. O novo lar foi edificado com estranhos labirintos, becos e túneis que, aos olhos de uma criança, como era a minha avó, não faziam sentido nenhum. Na mesma proporção cresceram novos hábitos e costumes. Hábitos que, noutras alturas, feriam sensibilidades de muito boa gente, contudo, a nova ordem impunha-se e, de forma abrupta, pelo lar adentro. Não restavam grandes alternativas, trazer para o dia-a-dia os novos costumes, da forma mais verosímil possível, era imperativo. Passaram, com reflexos nos dias de hoje, a ser praticantes de algo em que não acreditavam; a realização espiritual era nula; se dependesse única e exclusivamente do cristianismo, o mergulho na perfeita escuridão era certo. Estavam garantidos mais elementos para a quinta-coluna (conforme eram considerados os conversos pelos cristãos-velhos no seio da igreja) do corpo da Igreja, sem qualquer credibilidade na sociedade cristã e mais suspeitos do que os próprios judeus. Papel activo e efectivo na sociedade cristã? Nem pensar! Irremediavelmente isolados? Certo!
Independentemente do isolamento a que erem sujeitos, o antigo rabino exteriorizava o seu abraço fiel e sério à nova religião. As evidências estavam no facto de este ter confiado os seus dois filhos à Igreja, para serem educados nas ordens religiosas. Desconhece-se o enquadramento deste caso em particular, mas essa era a tradição seguida pelos conversos sinceros, encarada como uma oportunidade para progredirem. Como resultado disso viam-se, cada vez em maior número, estudantes conversos nas universidades castelhanas. Era mais um elemento para aguçar o perigo residente na luta constante entre os antigos e novos cristãos na busca de posições influentes, fundamentalmente, no seio da Igreja. Os antigos cristãos consideravam os conversos um perigo real, uma vez que a Igreja, na altura, estava aberta a todas as origens e classes sociais. Apesar da verosimilhança cristã dos meus ancestrais, materializada na mistura de palavras e actos com vista a baralhar os olhares atentos que incidiam sobre nós, esse não era, em termos particulares, o nosso problema, uma vez que a nossa encenação não ia, nem podia, ir tão longe quanto isso, mas, por outro lado, a superficialidade da nossa pseudo-fé cristã levantava-nos outros problemas que eram patentes aos olhos dos verdadeiros conversos. Estes atiravam-se a nós com todas as suas garras. No seu entender, o descrédito a que fomos todos votados resultava da nossa falta de sinceridade cristã e das nossas práticas judaizantes sombrias. Mostravam as mesmas garras ao judaísmo em geral. Em suma, era mais um arsenal anti-semita! Terá sido pura e simplesmente por zelo religioso ou existiam outras motivações? Nunca chegámos a perceber a verdadeira razão. Muitas vezes os ataques mais ferozes provinham daqueles que já tinham estado do outro lado da barricada. Eram imbuídos de profundos conhecimentos de rituais judaicos e teológicos capazes de fazer desvanecer a sua natureza hostil ou falsidades e calúnias neles camuflados para mais facilmente atingirem os objectivos pretendidos. Para os conversos, mesmo aqueles que o fizeram de livre vontade, poucas foram as vantagens que daí advieram, assistiu-se à exclusão destes de todos os cargos municipais. Esse era apenas mais um episódio da perigosa batalha que estava e ser travada pelos antigos e novos cristãos. De nada serviu a voz clerical que se insurgiu contra essa e outras medidas, chegando mesmo a ameaçar com excomunhão os seus autores, mas que não passaram de boas intenções, entretanto infrutíferas. As ramificações eram demasiadas para que uma única voz pudesse ecoar. Assistia-se, sim, à propaganda agitadora com eco significativo na fúria das populações contra os conversos». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT