domingo, 5 de abril de 2015

O Mistério da Pureza. Alexandre Borges. «… quando um navio negreiro francês aporta, em Moçambique, Pedro V ordena que a embarcação seja retida e o comandante preso. A França reage com fúria, exigindo a libertação imediata do capitão e do navio…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Pedro V e dona Estefânia
«(…) As poupanças de uma vida permitir-lhe-iam comprar uma quinta no Ribatejo, onde plantar oliveiras e fazer azeite e mal conseguir ouvir os lamentos daqueles que diziam que deixara órfãos a política, a intelectualidade e o país. Era este Herculano que dom Pedro procurava para conversar ao serão, discutir ciência e cultura ou perder-se, talvez, em assuntos só aparentemente triviais como o estado do tempo ou o varejamento da azeitona. O príncipe, repete-se, não era um jovem qualquer. E diz-se que, em Portugal, nunca outro foi tão bem preparado para ser rei. A hora chegou mais cedo do que se poderia prever. A mãe morreu, deixando-lhe o trono, quando Pedro tinha apenas 16 anos. O pai, dom Fernando II, assegurava a regência até que o filho atingisse a maioridade e permitindo-lhe concluir a sua formação. Já tinha o conhecimento dos livros e das artes. Faltava-lhe agora uma dose de mundo. Em 1854, Pedro parte pela Europa na companhia do irmão, dom Luís, a bordo do vapor Mindelo. Contacta com filósofos e intelectuais que hão-de influenciar para sempre a sua acção política, como escreverá mais tarde. Faz amizades entre as mais influentes casas reais do continente, em particular no Reino Unido. Cria uma ligação duradoura com a rainha Vitória e com o marido, e volta a visitá-los no ano seguinte, quando empreende nova viagem pela Europa.
A 16 de Setembro de 1855, dia em que completava 18 anos, dom Pedro V é formalmente aclamado rei. O pai permanecerá a seu lado, aconselhando-o no governo, mas o momento será todo do filho. Ia começar um reinado tão breve como marcante, descrito, em geral, numa palavra: exemplar. Contra o pessimismo de Herculano e, mais tarde, o de Eça, a verdade é que Portugal conheceria, naqueles anos, um raro período de desenvolvimento. Pedro V inaugurou ainda, naqueles últimos meses de 1855, o primeiro telégrafo eléctrico do país; um ano depois, faria o mesmo pelo primeiro troço de caminho-de-ferro em território nacional, ligando Lisboa ao Carregado. Um pouco mais tarde, viria a primeira carreira marítima regular entre Portugal e Angola.
Seria, porém, por outro perfil de actuação do rei que o povo o amaria: a proximidade; as preocupações sociais. Interessava-lhe a educação da população. Encomendou traduções de clássicos da literatura europeia e que se distribuíssem livros pelas crianças; fundou a Escola Real das Necessidades, perto do paço, e outra junto ao Convento-Palácio Nacional de Mafra. Aboliu a cerimónia do beija-mão, ritual anacrónico que sobrevivera ao fim da monarquia absoluta, e colocou uma caixa verde à porta do palácio real, da qual só ele tinha chave, para as queixas do povo. Na linha de pensamento humanista que seguia e dando continuidade a ideais já defendidos pela mãe, recusa assinar sentenças de morte e defende o fim da escravatura, dois temas fulcrais numa concepção universal dos direitos humanos em que Portugal virá a ser um dos pioneiros. Contudo, o país já sentia os efeitos de uma acentuada perda de relevância no contexto internacional: quando um navio negreiro francês aporta, em Moçambique, Pedro V ordena que a embarcação seja retida e o comandante preso. A França reage com fúria, exigindo a libertação imediata do capitão e do navio e reclamando uma indemnização ao Estado português.
Belo, próximo e com uma acção pautada por estes valores, Pedro era um rei sonhado que assumia os destinos do país no momento em que este, porventura, mais precisava de um líder como ele. Naqueles anos, Portugal era dilacerado por epidemias; primeiro a cólera, de 1853 a 56; depois, quando esta parecia controla da, a febre-amarela. Milhares de famílias choravam os mortos; outras tantas viviam no terror do contágio. Casas inteiras ficaram desertas, os teatros foram encerrados, muitos estabelecimentos comerciais fecharam. Não eram apenas os mortos e os doentes, era o medo. Milhares de pessoas trancavam a porta de casa e deixavam Lisboa na esperança de chegar à província primeiro do que a epidemia. Os enterros passaram a fazer-se à noite e na presença de muito poucas pessoas». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT