quarta-feira, 8 de abril de 2015

Flores na Tempestade Laura Kinsale. «Soltou-o, mas a sensação de formigueiro aumentou e teve a sensação de que era atingido por uma vertigem, como se a escada debaixo dele ondulasse sem se mover. Abriu e fechou a mão para a desentorpecer»

wikipedia e jdact

«Ele gostava de política radical e tinha um fraco por chocolate. Cinco anos antes, a honorável miss Lacy-Grey quase desmaiara quando num baile, perante testemunhas, ele a convidara para uma contradança, um exemplo do tipo de incidentes que os amigos achavam intensamente divertidos e gostavam de recordar ad nauseam enquanto bebiam. Circulava o rumor que uma proposta de casamento teria deixado a pobre rapariga maculada para o resto da vida, e um convite de um género inferior tê-la-ia matado de imediato. Christian encontrava-se naquele momento com a cabeça pousada na curva suave das costas dela, os dedos a deslizarem indolentes entre a meia e a pele macia mesmo acima da liga azul e amarela, e pensou que os amigos tinham sido um pouco exagerados nas suas previsões. Parecia viva e bem viva. Os tornozelos estavam belamente cruzados, e sacudiam-se com suavidade para cima e para baixo no ar acima dele. Christian pousou a palma da mão em cima da nádega dela, beijou o sinal no fundo das costas e endireitou-se, apoiado no cotovelo. Quando é que Sutherland regressa a casa? Em princípio, só daqui a duas semanas. A ex-miss Lacy-Grey rolou para o lado, sorriu, expôs os seios que se tinham tornado mais pesados, e a cintura ligeiramente mais gorda e inchada. Eram amantes há cerca de três meses. Christian passou os olhos pelas alterações subtis ergueu as pestanas, sem falar. Quem me dera que nunca mais voltasse, disse ela, e entrelaçou mãos acima da cabeça. Tem sido maravilhoso. Melhor do que chocolate, disse ele. A sério? Ele olhou em volta, ao lembrar-se. A cafeteira alta esperava-o, a chaleira a fervilhar suavemente no fogão. Desculpa. Levantou-se da cama. Seu homem odioso. Christian fez uma vénia rasgada e piscou-lhe o olho. Pegou na chaleira, deitou água quente sobre o leite frio, exactamente metade de cada, raspou algumas lascas de chocolate para dentro da cafeteira e agarrou manípulo do moinho. Sentia o tapete frio e acetinado sob os pés nus. Rodou o alto manípulo do moinho vigorosamente, aquilo deveria ter sido feito sobre o lume, não na cafeteira, mas as condições a altas horas a noite nos aposentos de outro homem nem sempre eram as ideais, serviu-se de uma chávena da mistura espumosa. Que consigas beber isso sem um único grão de açúcar é um desafio para a imaginação, observou ela. O açúcar és tu que lho dás, doçura, respondeu ele de imediato bebeu outra golada, nu junto da mesa. Como poderia ser de outro modo? Ela tentou fazer uma expressão aborrecida, mas acabou por lhe sorrir. Voltou a esticar os braços com um suspiro e, provocadora, arqueou o corpo ao mesmo tempo que fazia deslizar os pés enfiados nas meias, uma e outra vez, sobre os lençóis. A sério! Gostaria que Sutherland nunca mais regressasse a casa. Era melhor que desejasses que ele voltasse depressa para que se deitasse contigo, minha menina, e quanto mais depressa melhor. Ela levantou o olhar pousado nas mãos e de seguida voltou a baixá-las. Franziu de novo os lábios com aquela expressão tão atraente. Ele não se vai importar. Tenho a certeza que não, replicou Christian num tom cínico. Ela pousou a palma da mão no ventre inchado e observou-o pelo canto do olho. Christian pousou a chávena e inclinou-se sobre ela. Beijou-lhe o peito, enquanto lhe passava os dedos por entre o cabelo e lhe beijava o pescoço. Valeu a pena?, murmurou-lhe ao ouvido. Ela levantou os braços até lhe rodear os ombros e apertou-o com força. A suavidade daquela pele voltou a despertar o desejo em Christian, e, enquanto a jovem se agarrava a ele como se se estivesse a afogar, aproveitou o momento para lhe voltar a manchar a honra. Ela pareceu desfrutar o momento. Deus era testemunha disso. Na base da escadaria, cintilava a chama de uma única vela, que iluminava o braço esquerdo e as roupagens de uma reprodução em mármore de uma estátua de Ceres cujo olhar, num excesso de sentimentalismo, repousava num feixe de trigo que tinha aos pés. Christian desceu as escadas discretamente, mas não às escondidas, já que uma semana antes chegara a um acordo com o mordomo e passara a deixar junto do candelabro um impecável montículo formado por três moedas de ouro de cada vez que saía da casa. Estava à procura das moedas no bolso quando ouviu o som de passos mais em baixo. Deteve-se no patamar, a mão apoiada no corrimão. Edith?, perguntou do fundo das escadas uma voz masculina, que ecoou ligeiramente pelo vestíbulo. Que o diabo me carregue. Christian deteve-se, completamente imóvel. Na base da escada, surgiu Leslie Sutherland, a despir o casaco. Eydie?, voltou a chamar, e alisou as patilhas ruivas enquanto olhava para cima. No vestíbulo ouvia-se o tiquetaque de um relógio. Christian nunca se apercebera da sua presença, mas naquele instante de silêncio soou como um augúrio cristalino e irrevogável. Um... dois... três... quatro... Ao chegar a quatro, aconteceu. O meio sorriso desapareceu do rosto de Sutherland. Os lábios entreabriram-se-lhe. Christian não esperou que pronunciassem qualquer palavra e não o fizeram. Apenas silêncio e o rosto de Sutherland a tornar-se cada vez mais pálido, até a boca se fechar e a cor lhe invadir todo o rosto, com excepção dos vincos profundos junto ao nariz e em volta dos lábios. Seis... sete... oito... Christian pensou em diversas coisas para dizer, todas elas falsas e dirigidas a si mesmo, excepto a frase clássica: Voltaste mais cedo, não voltaste? Conteve-se. Sutherland ainda parecia presa de um profundo choque. Uma dormência incómoda na mão direita fez com que Christian se apercebesse da força com que agarrava o corrimão através da luva. Soltou-o, mas a sensação de formigueiro aumentou e teve a sensação de que era atingido por uma vertigem, como se a escada debaixo dele ondulasse sem se mover. Abriu e fechou a mão para a desentorpecer. O gesto pareceu despertar Sutherland. Olhou fixamente para a mão de Christian. Jervaulx, disse, num tom incongruentemente suave, vou matar-te por causa disto. Nem sequer pronunciou bem o nome, soou desajeitado. Demasiada ênfase no J e no X. Num momento arrepiante como aquele, a mente de Christian teve uma reacção absurda e repetiu a pronúncia exacta do seu título: Shervoh - Sbervoh - Sbervoh... Não proferiu palavra, estendeu a mão e voltou a dobrar os dedos até os transformar num punho, algo que lhe pareceu difícil de fazer. Sentia o braço pesado, como se adormecido, e um formigueiro percorria o interior dos ossos dos dedos. Os nomes dos teus padrinhos, disse Sutherland num tom mais elevado e com maior agressividade. Quero os nomes deles. Durham. E o coronel Fane. Era inevitável. Mas surpreendeu-se por se sentir tão estranho. Enquanto se olhavam, o relógio marcou mais dez segundos. Canalha. Fora da minha casa!» In Laura Kinsale, Flowers from the Storm, Flores na Tempestade, 2008, ISBN 978-989-626-121-4.

Cortesia de EArqueiro/JDACT