quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

A Criada do conde Henrique. 1147. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Pouco a pouco, na minha tenda apareceram as pessoas de quem eu gostava. Entraram Chamoa, Teresa Celanova, a minha meia-irmã Elvira Viegas, dona Justa e a princesa Zaida»

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A Criada do conde Henrique. 1147
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Lisboa, Outubro de 1147
Durante algum tempo, somos como animais ferozes, matamos e morremos até que alguém vença. Enquanto lutamos, é imparável esse instinto que avassala a alma humana, e lá vamos doidos. É assim com todos, nós também fizemos coisas destas, a crueldade está bem distribuída. Gente moura, gente do Norte, gente do Sul, do Minho ou da Flandres, de Córdova ou de Marrocos, somos todos duros quando combatemos, julgamos que expurgamos a terra do mal que vemos nos outros, mas apenas perpetuamos um ciclo infindável de violência e vingança. Foi Arnaldo de Aerschot, que no início eu julgara o mais abrutalhado, quem conseguiu suspender a ceifeira do Diabo, a espada daquele Belzebu desaustinado. Aos gritos e à paulada, domesticou a fúria dos soldados, até que todos pararam, com a respiração ofegante e o juízo de regresso.
Fod…, gritou ele. Até que enfim! A suspensão da matança ressuscitou a civilização, mas morreram mais de mil mouros nesse dia, mortes inúteis, pois a cidade era nossa, nenhum muçulmano lutava já, as armas eram atiradas para o chão, os haveres reunidos no castelo, eles queriam era que aquilo acabasse, para pararem o choro dos filhos, para lhes poderem dar de comer e adormecê-los à noite sem medo. Queridos filhos e netos, os homens e as mulheres são iguais em todo o mundo, aguentam a guerra até certo ponto, mas depois disso só querem é que termine, fazem o que for preciso, pois há coisas mais importantes do que dominar uma cidade.

Ao final da tarde, regressei exausto ao nosso acampamento, onde a minha esposa, Maria, me recebeu. Foi nos braços dela que voltei à vida. Uma sensação de irrealidade e de falta de pertença ainda me invadia, quando ela se aproximou de mim a sorrir. Nos meus ouvidos zurziam o tinir das espadas e gritos infernais, os meus olhos ainda viam labaredas enormes, clarões enchiam-me o espírito. Estava repleto de memórias de dor e horror: mastodontes irados a degolarem velhos magros, lanças a perfurarem barrigas, sonâmbulos sangrentos a gemerem no chão. Mas Maria abraçou-me e foi o cheiro do seu cabelo e o toque das suas mãos que me ressuscitaram para um mundo diferente, o meu mundo de amor e paz. Então, fui lavar-me, vestir outras roupas e adormeci algum tempo ao lado dela. Quando acordei, comi e bebi devagar, para o meu estômago digerir os alimentos sem os recusar. Por fim, perguntei a Maria: o rei!
Ela encolheu os ombros: está com a francesa. Mafalda da Sabóia exigia que Chamoa marchasse para Coimbra de imediato, mas Afonso Henriques recusara, não podia dispensar carroças, havia muito a fazer em Lisboa. Chamai a vossa irmã e os outros, pedi. E o rei.
Pouco a pouco, na minha tenda apareceram as pessoas de quem eu gostava. Entraram Chamoa, Teresa Celanova, a minha meia-irmã Elvira Viegas, dona Justa e a princesa Zaida. Vós sois bem-vindos também!, exclamei. Vira Pêro e Gualdim Pais à porta da minha tenda e incentivei-os a entrarem, reparando que o meu sobrinho só tinha olhos para a minha irmã Elvira Viegas. É a mais bela mulher que conheço, murmurou ele. Sorri, contente. O nosso alferes estava enamorado, prestes a colocar um ponto final numa bem-sucedida lista de troféus femininos. Onde está o Mem?, perguntei a Chamoa. Ela resmungou: deve ter ido às moçárabes. A minha cunhada tentava espicaçar Zaida com ciúmes, mas esta não mostrou qualquer incómodo, o que me levou a pensar que o destino do antigo almocreve não se afigurava muito risonho.
Têm de aproveitar, aprovou a princesa moura». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT