quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Quando se aproxima devagar do fim do álbum, dá-se conta de que a madrugada fizera esmorecer a luz cada vez mais fraca da vela…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas aquele é o lugar certo para ela começar o dia que desponta, revendo desde o princípio as gravuras do livro que a custo largara ao fim da tarde da véspera. Assim, tremendo com o frio da madrugada, dirigiu-se afoita à escrivaninha que a avó Leonor Távora lhe deu no Natal e a mãe quisera encostar à parede grande, do lado direito da janela, diante da qual crescem a perder de vista as magnólias, os cedros e as tílias. Mais tarde o sol cairá nas suas copas, soltando os odores dolentes e doces a temperarem as essências ásperas, ácidas, a fazer piscar os seus olhos toldados pelas longas pestanas. Leonor prefere a fulva tonalidade da glicínia, que contamina o fundo do jardim com um rubor intenso, trepando pelo muro alto, quase a chegar ao ferro do portão que abre para a mata. Senta-se na cadeira alta e abeira-se do tampo da escrivaninha onde na véspera cuidara de dissimular o livro, debaixo de papéis e cadernos que tirara da mesa da biblioteca. Antes de o abrir afaga-lhe a capa castanha de pele macia. Lá dentro encontram-se os mapas celestes, tal como lhos mostrara o pai, debruçado sobre eles tardes inteiras na procura de respostas para as dúvidas de ambos. Folheia uma após outra as páginas preciosas, detendo-se nas gravuras que conhece de cor, na esperança de descobrir nelas um pormenor diferente, na esfera armilar ou no astrolábio de que tanto gosta de repetir o nome, no desenho onde se vê o sol ao centro com planetas girando à sua volta. No cimo de muitos dos desenhos estão figuras de anjos num curto voo parado, dando a ver a toda a largura dos seus braços abertos faixas com frases escritas em latim. Em baixo, pensativa, encontra-se a deusa da sabedoria, com a lira, os livros, enquanto marca equívoca da passagem dos séculos.
Quando se aproxima devagar do fim do álbum, dá-se conta de que a madrugada fizera esmorecer a luz cada vez mais fraca da vela, não sabendo há quanto tempo a distracção a impede de ouvir os ruídos da casa que desperta: os sons abafados vindos do sótão onde fica a ala dos criados, a água que corre do jarro para uma bacia de louça, um objecto caindo no desamparo do chão, o chiar áspero de gonzos a amordaçar o cochicho das vozes à mistura com os frouxos de riso mal contidos pela palma das mãos gretadas, logo seguido de um demorado arrastar de pés descalços, pesados de sono. Escuta depois o estalar dos degraus que levam à cozinha, de onde não tardará a subir o cheiro acre do café amargo, do leite fervido e das natas, das papas de aveia e da aletria, do pão escuro aquecido em cima das brasas tiradas do borralho das cinzas. Apercebendo-se de como começa a ficar tarde, Leonor fecha a contragosto A Revolução Dos Orbes Celestes de Nicolau Copérnico, escorrega da cadeira, agarra o xaile e embrulha-se nele. Apaga em seguida o que resta do coto da vela, agarra no castiçal com a mão miúda e, silenciosa, corre de volta ao quarto onde Maria ainda dorme, enrolada nas mantas, cabeça debaixo da almofada de penas». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.
                                                         
Cortesia de PdQuixote/JDACT