quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Mas Leonor não pode ainda entender esses gestos de anseio e eternidade, instruída apenas na beleza loura e pura do Menino, que imagina estar a abençoá-la»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Escuridade feita de rolos de pó a desprenderem-se da caliça, do estuque, do entulho e também dos fumos dos incêndios ateados pelas velas acesas que, sacudidas dos candelabros e palmatórias, tombam das mesas dos quartos interiores e das bibliotecas, dos oratórios e dos altares, a rolarem pelos soalhos de madeira velha e vulnerável de igrejas, capelas e conventos. Pelos tapetes persas e de Arraiolos dos palácios, flamejando com gosto os cortinados de veludo por onde trepam, lambendo as franjas douradas, os panos de arrás, no devorar dos quadros e das tapeçarias. Chamas num rastejar silvante, um pouco por todo o lado, com preferência pelos cetins, as sedas puras e as rendas de bilros, os livros e os damascos de revestir as paredes, demorando-se em seguida nas imagens antigas dos santos de devoção, e por fim nos móveis: multiplicando-se nos toucadores, nas escrivaninhas, nas camas, nas cómodas de ébano, nos contadores com embutidos, encarniçando-se com afinco no estilhaçar dos espelhos, das louças e dos vidros.
Aterrada, Leonor empurra a irmã para trás no instante preciso em que a terra se imobiliza mais uma vez, curtos segundos em que as duas se sentem colhidas pela cintura, braços fortes a erguê-las à altura do peito do pai, a apertá-las num abraço de susto, quase sem darem conta da voz trémula da mãe, numa mescla de reza entoada, ladainha e palavras de premonição, num imbricado de português e latim: litania que o ruído sombrio das asas e dos gritos estridentes das gaivotas aflitas quase apaga. Antes de se levantarem as rajadas de vento forte que ajudarão a incendiar Lisboa, o ar imobiliza-se numa espécie de odor turvo e pestilento, cheiro acre a enxofre e a lodo estagnado do rio, a que se mistura o gosto salgado do mar, a acidez apodrecida do suor do medo, mas igualmente do vómito, das fezes e da urina.

De manhã, Maria gosta de ficar na cama, entorpecida, amodorrada na quentura dos sonhos, magrinha e sumida no ninho dos cobertores e dos lençóis de linho fino com renda na dobra larga, que ela puxa a esconder-se, antecipando-se à ama que todos os dias abre as janelas, portadas de madeira para trás a deixar entrar o ar fresco do começo da manhã. Leonor, pelo contrário, ergue-se de madrugada pelo gosto de acordar no silêncio da casa à escuta do sono dos outros, mais livre para inventar, poder fazer o que mais lhe apetece. Levanta-se pois de manso, pés miúdos e brancos debruçados de um dos lados do leito, enquanto se espreguiça alteando o corpo franzino escondido pela camisa de cambraia bordada a ponto de cruz na gola de abotoadura, cabelo frisado, caracóis de mel caídos em desalinho nos ombros miúdos. E quando finalmente ganha coragem para enfrentar a escuridão, desliza para o soalho de lustro puxado, embrulha-se arrepiada no xaile esquecido na véspera pela mãe quando lhes fora dar a boa-noite, silhueta delgada a curvar-se à luz bruxuleante da pequena lamparina do oratório: pavio amarelado a vogar aceso e devagar no cimo do azeite, diante da imagem do Menino Jesus vestido de pano branco, faixa debruada a ouro, dois dedos da mão direita soerguidos, enquanto com a esquerda aponta o próprio coração, como quem impõe a pureza no sítio onde se demora o negrume. Mas Leonor não pode ainda entender esses gestos de anseio e eternidade, instruída apenas na beleza loura e pura do Menino, que imagina estar a abençoá-la.
É nessa tremeluzente chama do oratório de talha que acende a vela da palmatória da sua mesa-de-cabeceira, e em seguida, dominando a custo a vontade de largar numa corrida tumultuada pelo corredor cheio de sombras ameaçadoras que parecem persegui-la, segue pé ante pé e de olhos franzidos. Por cada porta que se mantém fechada suspira de alívio, a caminho do gabinete escolhido nesse ano para sua sala de estudo, onde entretanto aprendera a ler sozinha. E quando lá chega pousa no chão a palmatória, estica ambos os braços finos até conseguir agarrar o puxador de louça. Ao entrar olha em torno, desconfiada, a perscrutar os possíveis perigos, sobretudo onde a fraca chama do círio não alcança». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT