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«(…) Todas as manhãs, quando me
levanto, vou pressurosa pelo caminho da galeria alta para os ofícios religiosos
da sua bela capela, mas nunca vivi nele um dia igual a este. Será talvez a
nostalgia dos anos. Quanto mais avanço na velhice, mais recordo o tempo da infância,
esse período claro da minha vida em que não sentia desamparo porque tudo estava
nas mãos de minha mãe. ... O que teria sido de mim sem ela?, pergunto-me hoje com
a mesma incerteza com que ela mo perguntava então. Ela dizia-me que não teria sabido
o que fazer se eu não tivesse nascido e fazia votos para seguir os passos de
meu pai, e sei que eu também não poderia ter resistido à minha vida sem o seu constante
apoio e a sua presença, pois a companhia de minha mãe também substituiu a de
meu pai. O que teria sido de mim sem ela, se nunca pude conhecer meu pai... Nem
conseguia imaginá-lo galhardo e alegre como todos afirmavam que era. Não conseguia
imaginá-lo criança de olhos ternos e amendoados como era o meu irmão Fernando, nem
ver o seu cabelo emaranhado. Não conseguia avistá-lo erguido no seu cavalo,
elegante e airoso, porque o imaginava sempre morto, dentro do seu caixão
fechado. Cheirando a fragrante incenso e a cera das velas consumidas juntamente
com o fumo resinoso das tochas. Não me impressionava nessa altura que se tivesse
determinado que seu corpo fosse enterrado em Espanha e que o seu coração fosse enviado
para a Flandres num cofre de ouro forrado a veludo, escoltado por uma procissão
de flamengos, o que me angustiava era já não estar ao nosso lado, nunca poder vir
a conhecê-lo ou abraçá-lo.
Hoje, desde que a alvorada se anunciou
silenciosa sobre um céu cinzento de chumbo e que o dia avançou com preguiça, tentando
libertar os seus raios de luz por entre as fendas das nuvens, o esplendor das velas
foi-se apagando mansamente, consumido pelas horas. Essas horas implacáveis que não
param diante de muros ou distâncias e que chegam, presunçosas, para cumprir com
os prazos que assinalam o fim de cada coisa. Esses prazos que se agitam no nosso
coração ao evocar recordações longínquas, aqueles dias que já foram e já não são,
avisando-nos, ao ritmo inalterável de um relógio próximo, a sua decisiva chegada
e a sua inadiável partida. Ainda nem chegaram e já têm de se ir embora, e assim
continuam numa interminável e incansável procura de um presente que, logo que se
aflora, se transforma em passado.
Só possuo este minuto, nem os que
passaram nem os que hão de vir serão meus. Noto que o tempo corre depressa, com
o único intuito de me acordar, de me fazer notar com toda a sua crueza que me encontro
de passagem/ que estou limitada a um determinado tempo, em que terei de viver pela
graça que o destino me conceder. E assim, como a abençoada chuva do Inverno que
molha lentamente a horta e os jardins, a minha memória detém-se em cada vivência,
sem que possa evitá-lo, recaindo sobre os momentos importantes da minha vida, recordando-os.
Vida pela qual peregrinei até chegar hoje ao lugar onde me encontro, através de
caminhos desconhecidos, marcados pelos contrastes mais extremos que foram gravando
na minha alma os matizes mais intensos dos prazeres e das dores.
As luzes da madrugada
surpreenderam-me acordada, enquanto lamentava a falta dos meus entes mais queridos.
Abertos os olhos e sem conseguir conciliar o sono, contemplei sem cansaço o
lavrado do tecto, firmemente esculpido em carvalho claro, em cada quadrilátero perfeito,
uma rosa inclina-se para mim prestes a soltar-se do caule, e é tal o realismo das
suas formas que, ao observar o conjunto de baixo, me parece detectar um ramo
imenso que espalha o seu perfume pelos ares». In Yolanda Scheuber, Catarina de
Habsburgo, Rainha de Portugal, Ediciones Nowtilus, 2011, Casa das Letras,
Oficina do Livro, 2013, ISBN 978-972-462-077-0.
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