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Palácio
do Limoeiro. Lisboa, 1 de Novembro de 1755
«(…) Senhora dona Leonor, nem sei como o
dizer a Vossa Excelência,
começou Vicente, gaguejando e torcendo o chapéu entre as mãos. Dá-se que…,
acabou um almocreve de aqui passar, dizendo que, na Paróquia dos Mártires, ruiu
o Convento de São Francisco e que o palácio do marquês de Marialva e o de Sua
Excelência o marquês de Távora tiveram a mesma triste sorte…Todas as casas da
Rua da Boa Viagem até aos Mártires e para diante ruíram… Minha senhora, há
notícia de que desapareceram os palácios do duque de Lafões, do duque de
Aveiro, dos condes do Vimieiro…, e o dos senhores condes de Atouguia… De minha
irmã Mariana? De meus queridos pais? Deus Nosso Senhor nos acuda! Vicente
confirmou, acenando com a cabeça e pedindo para se retirar. Vicente!, suplicou dona
Leonor, transtornada, preciso de saber de minha mãe e de minha irmã! Manda
alguém! Vai, vai já, traz-me novas depressa! Pois sim, Senhora dona Leonor, mas
não há modo de passar para lá…, ruiu tudo aqui à volta, não há caminhos, nem
lugares, tem de se subir pelos montes de escombros e voltar a descer, há fumo
por todo o lado, há labaredas acesas… Vai! Aparelha um cavalo e vai! Sem mais
demoras!, gritou dona Leonor, desfeita em lágrimas. Não me digas se é fácil ou
difícil, quero saber de minha mãe… Faz o que te digo!
Ao ver Vicente retirar-se com o medo estampado no olhar, dona
Leonor entregou Pedro à ama, ajoelhou-se no genuflexório e, escondendo a cara
entre as mãos, chorou de mágoa, de angústia, de desespero. Leonor sentou-se à
sua beira, fingindo-se entretida com a cauda do saiote, e, sem dizer uma só
palavra, ali ficou, cuidando poder aliviar-lhe a dor. Talvez que a sua
proximidade trouxesse à mãe alguma esperança, lhe desse algum conforto. Dona
Leonor!, interrompeu Feliciana, abeirando-se da sua senhora, chegou notícia de
que o Paço da Ribeira está a arder…, mas El-Rei José I e Sua Alteza
Sereníssima, a Rainha dona Mariana Vitória, estão de saúde, pela graça de Deus,
posto que desde ontem se encontravam no Paço de Belém, com toda a família real.
Diz que os animais que estavam por lá, no parque dos jardins reais, fugiram:
pássaros de além-mar, macacos, pumas, leões! As jaulas cederam, foi o que nos
chegou. Leonor levantou-se de um pulo e exclamou com os olhos a brilhar: foi o
que a mana ouviu, um leão a rugir! Não foi, Maria? Onde é que ele está,
Feliciana? Ora, menina Leonor, lá está a menina com a sua imaginação! Descanse
que os criados de El-Rei já mandaram matar as feras que escaparam! Leonor não
se deixou convencer pelas palavras de Feliciana; se Maria tinha ouvido um leão
a rugir, era porque um deles andava por ali a rondar. Agarrou-se com força
à boneca Perpétua. Sabia-se protegida pela mãe e pelos criados, no entanto,
esforçou-se por não adormecer: as feras tinham por costume atacar à noite… E
quem lhe garantia que não vinha aí outra onda gigante? Pela graça de Deus, não
me digas mais nada, Feliciana!, pediu dona Leonor. Dá a ceia às meninas, e a
ama que cuide de Pedro, que eu fico aqui a rezar até que o Senhor dom João
regresse e até que volte o Vicente com novas de minha mãe e de minha irmã
Mariana.
Sim, minha senhora, a cozinha está de
pé, e a despensa também. Vamos, menina Leonor, vamos menina Maria, deixem a
mãezinha sossegar, vamos! As duas crianças seguiram Feliciana pelo pátio do
palácio, dando a mão uma à outra. Leonor lembrou-se da boneca, que tinha ficado
esquecida junto ao genuflexório, deu uma corrida, apanhou-a e voltou a segurar
na mão de Maria. Ao sair da capela, olhou para trás, por cima do ombro: a mãe,
ajoelhada e julgando-se sozinha, deixava agora que os violentos soluços que
calara lhe sacudissem o corpo todo.
Já a noite ia alta quando dom João e
Francisco José Castro chegaram ao que restava do Palácio do
Limoeiro. Encontraram a família e os criados reunidos na capela. Dona Leonor
segurava no terço. Tinha o rosto transfigurado pelas lágrimas e pela angústia
daquele rosário de horas a que já perdera a conta. João! Senhor meu marido,
diz-me, diz-me depressa! Faz tempo que Vicente saiu daqui e ainda não voltou!
Nada sei de minha irmã Mariana, nem de meus pais…, suplicou, levantando-se e segurando
as mãos do marido. Conta-me a verdade, não me escondas nada… João estreitou a
mulher num abraço comovido: sossega, Leonor, estão todos de saúde, com a graça
de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo. Dormem?, perguntou, olhando para as filhas,
que repousavam em mantas, no chão, com a cabeça apoiada no colo das criadas. Dormem,
sim. A Leonorzita estava muito inquieta, não parava de fazer perguntas. O que
lhe respondo? O que dizer de toda esta tragédia? Não é tempo de respostas,
senhora minha esposa, não é tempo de respostas… Deixando-se cair num dos bancos
da capela, dom João sacudiu a fuligem das botas e da casaca. Depois,
recuperando forças, desabafou: acabei de ver a maior desgraça que em vida me
foi dado presenciar. Por todo o lado há mortos, feridos aos milhares, Leonor. Lisboa era aqui mas já não há
mais Lisboa, acredita! Lisboa desabou…, só me traz à memória o dia do Juízo
Final!» In Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011,
ISBN 978-989-555-554-3.
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