sábado, 23 de fevereiro de 2019

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «Havia alturas em que lhe parecia injusto tocá-la, como se o contacto dos seus dedos despertasse nela um sofrimento sem razão»

jdact e wikipedia

«(…) Vendemos bichos amestrados a estátuas, reformados barbudos de pedra para repuxos, soldados desconhecidos a domicílio. O homem cessara de a ouvir: o corpo dele mantinha a curva obsequiosa de ponto de interrogação na aparência atento de terceiro oficial a despacho, a testa, para onde todos os acidentes geográficos do seu rosto convergiam como passantes para um epiléptico a lagartixar na calçada, amarrotava-se de asséptico interesse profissional, a esferográfica aguardava a ordem estúpida de um diagnóstico definitivo, mas no palco dos miolos sucediam-se as imagens vertiginosas e confusas em que o sono se prolonga manhã fora, combatido pelo sabor do dentífrico na língua e a falsa frescura publicitária da loção de barbear, sinais inequívocos de se esbracejar já, instintivamente, na realidade do quotidiano, sem espaço para a cambalhota de um capricho: os seus projectos imaginários de Zorro dissolviam-se sempre, antes de começarem, no Pinóquio melancólico que o habitava, a exibir a hesitação do sorriso pintado sob a linha resignada da sua boca autêntica. O porteiro que todos os dias o acordava a golpes teimosos de campainha afigurava-se-lhe um são bernardo de barril ao pescoço a salvá-lo in extremis do nevão de um pesadelo. E a água do chuveiro, ao descer-lhe pelos ombros, levava-lhe da pele o suor de angústia de uma desesperança tenaz. Desde que se separara da mulher cinco meses antes que o médico morava sozinho num apartamento decorado de um colchão e de um despertador mudo imobilizado de nascença nas sete da tarde, malformação congénita do seu agrado por detestar os relógios em cujo interior de metal palpita a mola taquicárdica de um coraçãozinho ansioso. A varanda pulava directamente para o Atlântico por sobre as roletas do casino, em que se multiplicavam americanas idosas cansadas de fotografarem túmulos barrocos de reis, exibindo as sardas esqueléticas dos decotes numa arrepiante audácia de quakers renegadas. Estendido nos lençóis sem descer a persiana o psiquiatra sentia os pés tocarem o escuro do mar, diferente do escuro da terra pela inquietação ritmada que o agita. As fábricas do Barreiro introduziam no lilás da aurora o fumo musculoso das chaminés distantes. Gaivotas sem bússola esbarravam, estupefactas, com os pardais dos plátanos e as andorinhas de loiça das fachadas. Uma garrafa de aguardente iluminava a cozinha vazia da lâmpada votiva de uma felicidade de cirrose. De roupa espalhada no soalho o médico aprendia que a solidão possui o gosto azedo do álcool sem amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco do lava-loiças. E acabava por concluir, ao repor a rolha com uma palmada, assemelhar-se ao camelo recheando a sua bossa antes da travessia de uma longa paisagem de dunas, que teria preferido nunca conhecer.
Era em momentos desses, quando a vida se torna obsoleta e frágil como os bibelots que as tias-avós distribuem por saletas impregnadas do odor misto de urina de gato e de xarope reconstituinte, e a partir dos quais refazem a minúscula monumentalidade do passado familiar à maneira de Cuvier criando pavorosos dinossauros de lascas insignificantes de falangetas, que a recordação das filhas lhe tornava à memória na insistência de um estribilho de que se não lograva desembaraçar, agarrado a ele como um adesivo ao dedo, e lhe produzia no ventre o tumulto intestinal de guinadas de tripas em que a saudade encontra o escape esquisito de uma mensagem de gases. As filhas e o remorso de se ter escapado uma noite, de maleta na mão, ao descer as escadas da casa que durante tanto tempo habitara, tomando consciência degrau a degrau de que abandonava muito mais do que uma mulher, duas crianças e uma complicada teia de sentimentos tempestuosos mas agradáveis, pacientemente segregados. O divórcio substitui na era de hoje o rito iniciático da primeira comunhão: a certeza de amanhecer no dia seguinte sem a cumplicidade das torradas do pequeno-almoço partilhado (para ti o miolo para mim a côdea) aterrorizou-o no vestíbulo. Os olhos desolados da mulher perseguiam-no pelos degraus abaixo: afastavam-se um do outro como se haviam aproximado, treze anos antes, num desses agostos de praia feitos de aspirações confusas e de beijos aflitos, no mesmo turbilhonante e ardente refluxo de maré. O corpo dela permanecia jovem e leve apesar dos partos, e o rosto mantinha intactos a pureza dos malares e o nariz perfeito de uma adolescência triunfal: junto dessa beleza esguia de Giacometti maquilhado achava-se sempre desajeitado e tosco no seu invólucro que começava a amarelecer de um Outono sem graça. Havia alturas em que lhe parecia injusto tocá-la, como se o contacto dos seus dedos despertasse nela um sofrimento sem razão. E perdia-se entre os seus joelhos, afogado de amor, a gaguejar as palavras de ternura de um dialecto inventado». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1973,1983, Publicações dom Quixoye, Bis, Grupo Leya,1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT