sábado, 23 de fevereiro de 2019

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «A boca dela, redonda como argola de guardanapo, exibia ao fundo a lágrima trémula da úvula balouçando como um pêndulo ao ritmo dos seus berros…»

jdact e wikipedia

«(…) Quando é que eu me fo…?, perguntou-se o psiquiatra enquanto a Charlotte Bronte prosseguia impassível o seu discurso de Lewis Carroll grandioso. Como quem enfia sem pensar a mão no bolso à procura da gorjeta de uma resposta mergulhou o braço na gaveta da infância, bricabraque inesgotável de surpresas, tema sobre o qual a sua existência posterior decalcava variações de uma monotonia baça, e trouxe à tona ao acaso, nítido na concha da palma, ele miúdo acocorado no bacio diante do espelho do guarda-fato em que as mangas dos casacos pendurados de perfil como as pinturas egípcias proliferavam na abundância de lianas moles dos príncipes de gales do seu pai. Um puto loiro que alternadamente se espreme e observa, pensou concedendo um soslaio aos anos devolutos, eis um razoável resumo dos capítulos anteriores: costumavam deixá-lo assim horas seguidas na sua chávena de Sèvres de esmalte onde o chichi pianolava escalas tímidas de harpa, a conversar consigo mesmo as quatro ou cinco palavras de um vocabulário monossilábico completado de onomatopeias e guinchos de saguim abandonado, ao mesmo tempo que no andar de baixo a tromba de papa-formigas do aspirador sugava carnivoramente as franjas comestíveis das carpetes manejada pela mulher do caseiro a quem o incómodo das pedras da vesícula acentuava o aspecto outonal. Quando é que eu me fo…?, inquiriu o médico ao garoto que a pouco e pouco se dissolvia com a sua gaguez e o seu espelho para ceder lugar a um adolescente tímido, de dedos manchados de tinta, encostado a uma esquina propícia a fim de assistir à passagem indiferente e risonha das raparigas do liceu cujos soquetes o abalavam de desejos confusos mas veementes afogados em chás de limão solitários na pastelaria vizinha, ruminando num caderno sonetos à Bocage policiados pela censura estrita do catecismo de bons costumes das tias. Entre esses dois estádios de larva incipiente plantavam-se, como numa galeria de bustos de gesso, manhãs de domingo em museus desertos balizados de retratos a óleo de homens feios e de escarradores fedorentos onde as tosses e as vozes ecoavam como em garagens à noite, chuvosos verões de termas imersos em nevoeiros irreais de que nasciam a custo silhuetas de eucaliptos feridos, e sobretudo as árias de ópera da rádio escutadas da sua cama de garoto, duetos de insultos agudos entre um soprano de pulmão de varina e um tenor que incapaz de lhe fazer frente acabava por a enforcar à traição no nó corredio de um dó de peito interminável, conferindo ao medo do escuro a dimensão do Capuchinho Vermelho escrito por um lápis de violoncelos. As pessoas crescidas possuíam nessa altura uma autoridade indesmentida avalizada pelos seus cigarros e pelos seus achaques, inquietantes damas e valetes de um baralho terrível cujos lugares na mesa se reconheciam através da localização das embalagens de remédios: separado delas pela subtil manobra política de me darem banho a mim enquanto eu nunca os via nus a eles, o psiquiatra conformava-se com o papel de quase figurante que lhe distribuíam, sentado no chão da sala às voltas com os jogos de cubos que se consentem como divertimento dos vassalos, ansiando pela gripe providencial que desviasse do jornal para si a atenção cósmica daqueles titãs, transformada de súbito num desvelo de termómetros e de injecções. O pai, precedido pelo odor de brilhantina e de tabaco de cachimbo cuja combinação representou para ele durante muitos anos o símbolo mágico de uma virilidade segura, entrava no quarto de seringa em riste e depois de lhe arrefecer as nádegas com o pincel de barba húmido do algodão introduzia-lhe na carne uma espécie de dor líquida que solidificava num seixo lancinante: recompensavam-no com os frasquinhos de penicilina vazios de que se evolava um rastro de perfume terapêutico, tal como dos sótãos fechados surde, pelas frinchas da porta, o aroma de bolor e alfazema dos passados defuntos.
Mas ele, ele, Ele quando é que se lixara? Folheou rapidamente a meninice desde o Setembro remoto do fórceps que o expulsara da paz de aquário uterina à laia de quem arranca um dente são da comodidade da gengiva, demorou-se nos longos meses da Beira iluminados pelo roupão de ramagens da avó, crepúsculos na varanda sobre a serra a escutar o lume brando da febre monótona dos ralos, campos em declive marcados pelas linhas dos caminhos-de-ferro idênticas a veias salientes em costas de mão, saltou as aborrecidas páginas sem diálogo de algumas mortes de primas idosas que o reumático empenara de vénias de ferradura, tocando com os fiapos dos cabelos brancos os tofos de gota dos joelhos, e preparava-se para explorar de lupa psicanalítica em punho as angustiosas vicissitudes da sua estreia sexual entre uma garrafa de permanganato e uma colcha duvidosa que conservava viva, junto da almofada, a pegada de yeti da sola do cliente anterior, demasiado apressado para se preocupar com o detalhe insignificante dos sapatos ou suficientemente púdico para manter as peúgas naquele altar de blenorragias a taxímetro, quando a Charlotte Bronte o despertou para a realidade presente da manhã hospitalar sacudindo-lhe a mãos ambas as dobras do casaco ao mesmo tempo que entrelaçava o grosso fio de lã libertária da Marselhesa no crochet bairrista do fado Alexandrino com as agulhas destras de um contralto inesperado. A boca dela, redonda como argola de guardanapo, exibia ao fundo a lágrima trémula da úvula balouçando como um pêndulo ao ritmo dos seus berros, as pálpebras tombavam sobre as pupilas perspicazes à laia de cortinas de teatro que tivessem descido por engano a meio de um Brecht sabiamente irónico». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1973,1983, Publicações dom Quixoye, Bis, Grupo Leya,1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT