segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Contudo, não parecia triste ou zangada, apenas curiosa. Ao vê-lo, acercou-se, apoiada no seu cajado. Reparou no corpo e na cabeça degolada, e suspirou»

jdact

Coimbra. Julho de 1117
«(…) Por mais anos que Mem vivesse, nunca iria esquecer aquele momento. Os joelhos falharam-lhe, viu a cabeça do pai a voar, cortada pela violência do golpe dado pelo monstro. Um jacto de sangue espirrou e o corpo mole do pai, já sem vida, tombou para o lado, enquanto Mem sentia uma dor violenta no peito, uma dor que não o abandonara ainda horas depois. O medo de morrer impedira-o de gritar. Ficara em silêncio, cerrando os dentes, pois, se fizesse algum ruído, o carrasco vestido de branco, a poucos metros, teria ouvido. Viu-o cirandar de um lado para o outro, procurando mais doentes, e depois dar meia-volta e desaparecer. Ainda ouviu berros, mais longe, até que tudo caiu no mais sinistro silêncio. Não se ouvia um gemido, um lamento de um moribundo. Aquele fantasma sanguinário matara todos os doentes, mais de trinta, em pouco tempo, como se fosse uma praga letal que ceifava vidas, idêntica às das histórias bíblicas que o pai lhe contava.
Durante horas, Mem permaneceu totalmente paralisado de choque e pavor, e foi só quando o Sol já ia bem alto que se aproximou do cadáver do pai. Contraindo-se em espasmos, viu a cabeça afastada do corpo, o sangue escuro espalhado na terra e não conseguiu avançar. Desatou a chorar. A única pessoa de quem gostava estava morta. De um momento para o outro, quando nada o fazia prever, aparecera um demónio branco que o degolara. Mem não sabia o que fazer. Estava nu, nem se lembrava onde entrara no rio e largara a roupa, e não queria deixar o pai ali, para ser roído pelos bichos, a apodrecer ao sol. Mas também não tinha forças para o enterrar, nem nada com que fazer um fogo para o cremar. Era apenas uma criança de doze anos, não estava preparado para aquela provação, e limitou-se a ficar ali, ajoelhado, as lágrimas escorrendo-lhe pela cara.
A dada altura, o mundo escureceu, e ele deduziu que era o que acontecia quando morria alguém de quem gostávamos muito. Aquilo era mesmo estranho, parecia que estava a anoitecer a meio do dia. Então, Mem olhou em volta e viu melhor: o que se passava não era dentro dele, mas sim fora dele. Ergueu os olhos para o Sol e notou que ele desaparecera atrás de uma bola castanha, escurecendo o dia. E ao lado, no céu, existiam estrelas. Seria um milagre? Deus e Alá a tirarem a luz ao mundo? Mem estava perplexo. O pai nunca lhe falara em nada assim. De repente, ouviu um barulho, alguém a aproximar-se. Era uma mulher já envelhecida, com a cara cheia de rugas e verrugas. Feia, estava vestida de preto, com um capuz da mesma cor a cobrir-lhe a cabeça. Contudo, não parecia triste ou zangada, apenas curiosa. Ao vê-lo, acercou-se, apoiada no seu cajado. Reparou no corpo e na cabeça degolada, e suspirou. Sois cristão ou árabe?, perguntou». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
                                         
Cortesia de CdasLetras/JDACT