domingo, 20 de novembro de 2022

Levantado do Chão. José Saramago. «Do sul, ao encontro deles, vinha uma enorme massa de nuvens, densa e enrolada, sobre a planície cor de palha. O caminho mergulhava a direito, mal definido entre os valados que se esboroavam, rasoira pelos ventos do descampado»

 

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) Começou-lhes a chover para o fim da tarde, com o sol meio palmo acima dos cabeços baixos, à mão direita, estavam portanto as bruxas a pentear-se, que este é o tempo que escolhem. O homem fez parar o burro, e com o pé, para o aliviar da carga no teso da encosta breve, empurrou uma pedra até à roda da carroça. Esta chuva, que ideia terá dado ao regedor das celestes águas, não é da estação. Por isso há tanta poeira no caminho e alguma bosta seca ou bonicos de cavalo, que por longe de lugares habitados ninguém veio apanhar até aqui. Nenhum rapazito de cesta enfiada no braço se aventurou tão longe no rabisco do estrume natural, colhendo cuidadoso com as pontas dos dedos a esfera estaladiça, às vezes fendida como um fruto maduro. Sob a chuva, o chão pálido e quente salpicou-se de estrelas escuras, súbitas, caindo surdamente na poeira fofa, e depois uma pancada de água deu de chapa e alagou. Mas a mulher tivera tempo de tirar a criança da carroça, do côncavo que o enxergão de riscas fazia entre duas arcas. Aconchegou-a ao peito, cobriu-lhe a cara com a ponta desatada do lenço, e disse, Não acordou.

De cuidados foi este o primeiro, outro logo, Vai-se molhar tudo. O homem estava a olhar para as nuvens altas, a franzir o nariz, e decidiu em seu saber de homem, Isto passa, é aguaceiro, mas por sim por não desenrolou uma das mantas, estendeu-a por cima dos móveis, Logo hoje havia de chover, raios partam. Um rufo de vento fez correr as gotas agora esparsas. O burro sacudiu com força as orelhas quando o homem lhe assentou uma palmada no lombo, deu um esticão aos varais, e o homem ofereceu sua ajuda empurrando na roda. Recomeçaram a subir a pequena ladeira. A mulher seguia atrás, com o filho ao colo, e gostosa do sossego do infante espreitou-lhe o rosto, murmurando, Meu menino. De um lado e do outro do caminho carreteiro, a terra era de mato, com algumas azinheiras perdidas e sufocadas até meio tronco, ao abandono ou acaso ali nascidas. As rodas da carroça calcavam a terra molhada, faziam um ruído áspero de trituração, e de vez em quando batiam uma pancada bruta, de ressalto, se uma pedra levantava o ombro. Os móveis rangiam debaixo da manta. O homem, ao lado do burro, com a mão direita pousada no varal, seguia calado. E assim chegaram ao alto da encosta.

Do sul, ao encontro deles, vinha uma enorme massa de nuvens, densa e enrolada, sobre a planície cor de palha. O caminho mergulhava a direito, mal definido entre os valados que se esboroavam, rasoira pelos ventos do descampado. Ao fundo, ia juntar-se a uma estrada larga, maneira ambiciosa de dizer em terras de tão má serventia. Para a esquerda, quase no roço do horizonte rebaixado, uma pequena povoação virava a poente as paredes brancas. A planície era imensa, como já foi dito, lisa, arrasada, raras azinheiras isoladas ou aos pares, e pouco mais. Daquela pequena altura, não era difícil acreditar que o mundo não tem fim conhecido. E a povoação, lugar de destino, vista dali, à luz amarelada e sob a grande placa de chumbo das nuvens, parecia inatingível. São Cristóvão, disse o homem. E a mulher, que nunca viajara tanto para o sul, Monte Lavre é maior, pareceu só um dizer de comparação, seria talvez saudade. Iam a meio da encosta quando a chuva voltou. Caíram primeiro umas bagadas grossas, ameaça de cordas de água, onde é que já ia o aguaceiro. Depois o vento rapou a planície, varejou-a toda como uma vassoura, levantou a palha e o pó, e a chuva avançou do horizonte, cortina parda que em pouco tempo ocultou a paisagem distante. Era uma chuva regular, daquelas que vêm para muitas horas, caindo e alagando, chegou e não se vai embora, e quando a terra já não pode com tanta água, nem cuidamos de saber se é o céu que nos molha, se a terra que nos encharca. O homem tornou a dizer, Raios partam, são os desabafos da humanidade quando outros de melhor consonância se não aprenderam. Estão longe os abrigos, mesmo sem horta nas costas, não há outro remédio que receber nelas quanta chuva caia. Dali à povoação, com este passo de burro que vem cansado e vai de pouca vontade, não será menos de uma hora de caminho, e entretanto se fará noite. A manta, que mal protege os móveis, escorre, empapada, pinga-lhe a água dos fios brancos, como estarão por baixo as roupas dentro das arcas, os parcos bens migratórios desta família que por suas razões vai atravessando o latifúndio. A mulher olha o céu, é um jeito antigo e rural de ler esta grande página aberta sobre a nossa cabeça, agora a ver se estava aclarando o ar, e não estava, antes mais carregado de tinta escura, não temos outra tarde. A carroça corre lá adiante, é um barco a dar de bordo no dilúvio, vai cair tudo, parece que de propósito o homem está sovando o burro, e é só a pressa de alcançar aquela azinheira, sempre nos resguardamos da maior. Já lá chegaram, homem, carroça e burro, e ainda a mulher aqui vai, patinhando na lama, não pode correr, acordaria a criança, assim é o mundo feito que não se apercebem uns do mal dos outros, mesmo quando tão perto estão como mãe e filho». In José Saramago, Levantado do Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN 978-972-212-236-8.

Cortesia de ECaminho/JDACT

JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita,