«(…) Começou-lhes a chover para o fim da tarde, com o sol meio palmo acima dos cabeços baixos, à mão direita, estavam portanto as bruxas a pentear-se, que este é o tempo que escolhem. O homem fez parar o burro, e com o pé, para o aliviar da carga no teso da encosta breve, empurrou uma pedra até à roda da carroça. Esta chuva, que ideia terá dado ao regedor das celestes águas, não é da estação. Por isso há tanta poeira no caminho e alguma bosta seca ou bonicos de cavalo, que por longe de lugares habitados ninguém veio apanhar até aqui. Nenhum rapazito de cesta enfiada no braço se aventurou tão longe no rabisco do estrume natural, colhendo cuidadoso com as pontas dos dedos a esfera estaladiça, às vezes fendida como um fruto maduro. Sob a chuva, o chão pálido e quente salpicou-se de estrelas escuras, súbitas, caindo surdamente na poeira fofa, e depois uma pancada de água deu de chapa e alagou. Mas a mulher tivera tempo de tirar a criança da carroça, do côncavo que o enxergão de riscas fazia entre duas arcas. Aconchegou-a ao peito, cobriu-lhe a cara com a ponta desatada do lenço, e disse, Não acordou.
De cuidados foi este o primeiro,
outro logo, Vai-se molhar tudo. O homem estava a olhar para as nuvens altas, a
franzir o nariz, e decidiu em seu saber de homem, Isto passa, é aguaceiro, mas por
sim por não desenrolou uma das mantas, estendeu-a por cima dos móveis, Logo
hoje havia de chover, raios partam. Um rufo de vento fez correr as gotas agora
esparsas. O burro sacudiu com força as orelhas quando o homem lhe assentou uma
palmada no lombo, deu um esticão aos varais, e o homem ofereceu sua ajuda
empurrando na roda. Recomeçaram a subir a pequena ladeira. A mulher seguia atrás,
com o filho ao colo, e gostosa do sossego do infante espreitou-lhe o rosto, murmurando,
Meu menino. De um lado e do outro do caminho carreteiro, a terra era de mato, com
algumas azinheiras perdidas e sufocadas até meio tronco, ao abandono ou acaso
ali nascidas. As rodas da carroça calcavam a terra molhada, faziam um ruído áspero
de trituração, e de vez em quando batiam uma pancada bruta, de ressalto, se uma
pedra levantava o ombro. Os móveis rangiam debaixo da manta. O homem, ao lado
do burro, com a mão direita pousada no varal, seguia calado. E assim chegaram
ao alto da encosta.
Do sul, ao encontro deles, vinha
uma enorme massa de nuvens, densa e enrolada, sobre a planície cor de palha. O
caminho mergulhava a direito, mal definido entre os valados que se esboroavam,
rasoira pelos ventos do descampado. Ao fundo, ia juntar-se a uma estrada larga,
maneira ambiciosa de dizer em terras de tão má serventia. Para a esquerda,
quase no roço do horizonte rebaixado, uma pequena povoação virava a poente as
paredes brancas. A planície era imensa, como já foi dito, lisa, arrasada, raras
azinheiras isoladas ou aos pares, e pouco mais. Daquela pequena altura, não era
difícil acreditar que o mundo não tem fim conhecido. E a povoação, lugar de
destino, vista dali, à luz amarelada e sob a grande placa de chumbo das nuvens,
parecia inatingível. São Cristóvão, disse o homem. E a mulher, que nunca
viajara tanto para o sul, Monte Lavre é maior, pareceu só um dizer de comparação,
seria talvez saudade. Iam a meio da encosta quando a chuva voltou. Caíram
primeiro umas bagadas grossas, ameaça de cordas de água, onde é que já ia o
aguaceiro. Depois o vento rapou a planície, varejou-a toda como uma vassoura,
levantou a palha e o pó, e a chuva avançou do horizonte, cortina parda que em
pouco tempo ocultou a paisagem distante. Era uma chuva regular, daquelas que vêm
para muitas horas, caindo e alagando, chegou e não se vai embora, e quando a
terra já não pode com tanta água, nem cuidamos de saber se é o céu que nos
molha, se a terra que nos encharca. O homem tornou a dizer, Raios partam, são
os desabafos da humanidade quando outros de melhor consonância se não
aprenderam. Estão longe os abrigos, mesmo sem horta nas costas, não há outro
remédio que receber nelas quanta chuva caia. Dali à povoação, com este passo de
burro que vem cansado e vai de pouca vontade, não será menos de uma hora de caminho,
e entretanto se fará noite. A manta, que mal protege os móveis, escorre,
empapada, pinga-lhe a água dos fios brancos, como estarão por baixo as roupas
dentro das arcas, os parcos bens migratórios desta família que por suas razões
vai atravessando o latifúndio. A mulher olha o céu, é um jeito antigo e rural
de ler esta grande página aberta sobre a nossa cabeça, agora a ver se estava
aclarando o ar, e não estava, antes mais carregado de tinta escura, não temos
outra tarde. A carroça corre lá adiante, é um barco a dar de bordo no dilúvio,
vai cair tudo, parece que de propósito o homem está sovando o burro, e é só a
pressa de alcançar aquela azinheira, sempre nos resguardamos da maior. Já lá
chegaram, homem, carroça e burro, e ainda a mulher aqui vai, patinhando na
lama, não pode correr, acordaria a criança, assim é o mundo feito que não se apercebem
uns do mal dos outros, mesmo quando tão perto estão como mãe e filho». In
José Saramago, Levantado do Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN
978-972-212-236-8.
Cortesia de ECaminho/JDACT
JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita,