De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
«(…) O viajante começa a descer
por uma estrada ainda pior. Range e protesta a suspensão do automóvel, e é um
alívio quando, entre charcos e lama, aparece a Junqueira. Não é lugar de
particular importância. Mas, como o viajante é capaz de inventar as suas próprias
obras de arte, aqui está esta fachada de capela barroca sem telhado, com uma
exuberante figueira a crescer lá dentro e já a ultrapassar a altura da empena.
Por um olho-de-boi se chegaria aos figos, se a figueira não fosse, afinal,
brava. Decerto causam espanto no povo estas admirações. Aparece por cima de um
muro a cabeça duma rapariga, depois outra, e logo a seguir a mãe delas. O
viajante faz uma pergunta qualquer, dão-lhe resposta em repousada voz transmontana,
e depois a conversa pega, não tarda que o viajante saiba casos desta família, e
um deles, terrível história de princesas encantadas e fechadas em altas torres,
é que estas duas raparigas nunca daqui saíram, nem para ir à Torre de Moncorvo,
apenas treze quilómetros. É o pai que não deixa, isto de raparigas é preciso
todo o cuidado, o senhor bem sabe. O viajante tem ouvido dizer, por isso não
nega nem confirma: E a vida, como vai por aqui? Arrastada, responde a mulher.
Conversas destas deixam sempre o
viajante mal-humorado. Por isso quase não tem olhos para Vila Flor, teve de
abrir o guarda-chuva, foi levar recado a um conhecido, espreitou o S. Miguel
por cima da porta da igreja. O viajante tem vindo a reparar que há por estes
lados uma grande devoção ao arcanjo. Já em Mogadouro lá estava, num altar das
almas, e noutros sítios também, preocupados todos com as probabilidades do
purgatório. Aqui, quando já se dispunha a continuar caminho, o viajante emenda
a mão. Afinal, o pórtico desta matriz do século XVII é digno de grandes atenções
e demora suficiente: as colunas torsas, os motivos florais, a geometria doutros
armam um conjunto que fica na memória. Também fica na memória, infelizmente, um
painel de azulejos embutido numa parede em que um cidadão Trigo de Morais dá
conselhos aos filhos. Não são maus os conselhos, mas foi péssima a ideia. E que
importância se dava o conselheiro para assim vir moralizar à praça pública
aquilo que deveria ser recomendação de portas adentro! Enfim, esta viagem a
Portugal terá de tudo.
Voltou a chover. Não se vê ninguém
no largo quando o viajante vira a última esquina que para ele dá. Mas ao
atravessar sente que o seguem por trás das vidraças e há quem o olhe seco de
dentro das lojas, talvez com desconfianças. O viajante parte como se carregasse
às costas as culpas todas de Vila Flor ou do mundo. Provavelmente é verdade.
A direito para o norte, por
estradas de sobe e desce, chega-se a Mirandela. Para o viajante, é apenas ponto
de passagem, embora já no caminho para Bragança vá cismando nas ignoradas razões
por que a ponte que atravessa o rio Tua tem desiguais todos os arcos, e se a
originalidade já vem dos romanos, seus primeiros construtores, ou é preciosismo
do século XVI em que alguma reconstrução houve. Desagrada muito ao viajante não
saber os motivos de coisas tão simples como esta de ter uma ponte vinte arcos e
nenhum igual a outro. Porém, não tem remédio senão conformar-se: havia de ter
que ver, ficar a interrogar as mudas pedras, enquanto as águas iam murmurando
nos talha-mares.
Para estes lados, há umas povoações
a que chamam aldeias melhoradas. São elas Vilaverdinho, Aldeia do Couço
e Romeu. Por causa da singularidade do nome, e também porque um grande letreiro
informa haver aí um museu de curiosidades, o viajante escolhe Romeu para maior demora.
Porém em Vilaverdinho é que soube que a ideia das melhorias foi de um antigo
ministro de Obras Públicas, tanto que de ideia humana se gaba de ter
sido, em inscrição adequada, confirmada pelas letras abertas em enorme
pedregulho à beira da estrada, em que se afirma que os habitantes nunca
esquecerão um presidente que ali foi à inauguração, em Agosto de 1964. Estas
inscrições são sempre duvidosas, imagine-se o que irão pensar os historiadores
e os epigrafistas futuros se derem com a lápide e acreditarem. À frente do nome
desse presidente, alguém escreveu ladrão, vocábulo perturbador que nos
dias de amanhã talvez seja desconhecido.
Em Romeu, há o museu.Tem de tudo
como na botica: automóveis de dona Elvira, carruagens e arreios, telefonias e
galenas, cítaras, caixas-de-música, pianolas, relógios muitos, telefones dos
primeiros que vieram, alguns trajos, fotografias, enfim, um tesouro pitoresco
de pequenos objectos que fazem sorrir. São os antepassados toscos das
tecnologias novas que nos vão transformando em serventuários e ignorantes. O viajante,
quando sai, encolhe os ombros, mas agradece à família Meneres, que foi da
ideia. Sempre aprendeu alguma coisa.
Chuvisca.
O viajante liga e desliga o limpa-vidros, num jogo que vai descobrindo a
paisagem e logo a deixa mergulhar, imprecisamente, como dentro dum aquário
turvado. À esquerda, a serra da Nogueira já é uma senhora serra, com os seus
mil e trezentos metros. Um outro jogo divertido é o das passagens de nível,
felizmente todas abertas quando o viajante passa. Em trinta quilómetros são
nada menos que cinco: Rossas, Remisquedo, Rebordãos, Mosca, e outra de que não
ficou o nome. E ainda mal, que neste caso são os nomes que se salvam». In
José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão
2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,