domingo, 13 de novembro de 2022

O Pintor de Almas. Ildefonso Falcones. «… em azulejos e revestimentos de paredes, mosaicos, forjados, marcenaria e vitrais, assim como nos milhares de esculturas de gesso que ornamentavam os edifícios»

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Barcelona. Maio de 1901

«(…) Aquelas duas obras, entre muitas outras que já clamavam uma mudança, uma concepção diferente da arquitectura, foram, nas palavras do mestre de Dalmau, as precursoras da Casa Calvet na Rua Casp de Barcelona, na qual Gaudí começou a abandonar a concepção historicista, que inspirou a sua obra durante a primeira fase do século anterior, para desenvolver uma arquitectura na qual pretendia que a matéria ganhasse movimento. Movimento, as pedras!, exclamava don Manuel Bello, com a perplexidade espelhada no rosto.

As mulheres e os edifícios, confessou certa vez a Dalmau, vão-se desprendendo pouco a pouco da sua classe, porte e senhoria, da sua história, e prostituem-se: umas para se transformarem em cobras serpenteantes, e outros em matéria inconsistente. O homem virou-lhe as costas com espalhafato, como se o universo se estivesse a desmoronar. Dalmau evitou replicar que se sentia atraído por mulheres serpenteantes e que admirava aqueles que queriam que o ferro forjado, a pedra e, inclusivamente, a cerâmica, ganhassem movimento. Quem, a não ser um bruxo, um mago, um criador excepcional, podia apresentar ao espectador a matéria transformada em fluido!

Uma grande carroça carregada de argila, puxada por quatro poderosos percherons com a cabeça, pescoço e garupa fortes e imponentes, e patas grossas e peludas, que passou lenta e pesadamente ao seu lado, fazendo estremecer a terra, arrancou Dalmau dos seus pensamentos. Ergueu a vista para ver a abarrotada traseira da carroça recortada contra as chaminés altas dos fornos da fábrica que se erguiam bem acima dele. Manuel Bello García. Fábrica de Azulejos. Era este o anúncio que, em cerâmica branca e azul, rematava o portal da entrada; a partir daí, abria-se uma zona ampla com tanques e secadouros, junto aos armazéns, às oficinas e aos fornos. Era uma fábrica de média dimensão, que produzia trabalhos em série, mas também elaborava as peças especiais que os arquitectos ou mestres-de-obras desenhavam ou imaginavam para os seus edifícios ou os inúmeros estabelecimentos comerciais, lojas, farmácias, hotéis, restaurantes e outros que recorriam à cerâmica como um dos elementos decorativos por excelência.

Era esse o trabalho de Dalmau: desenhar. Criar modelos originais que depois eram fabricados em série e faziam parte do catálogo da firma; concretizar e desenvolver aqueles que os mestres-de-obras imaginavam para os seus edifícios ou estabelecimentos, e que apenas esboçavam, ou então executar os modelos que os grandes arquitectos modernistas lhes levavam já perfeitamente elaborados. Desculpe, don Manuel… Dalmau apresentou-se no escritório e estúdio do mestre, junto às oficinas da fábrica, no primeiro piso de um dos edifícios que compunham o complexo. Mas a situação no bairro velho era caótica. Manifestações, cargas da polícia, exagerou. Tive de zelar pela minha mãe e a minha irmã. Devemos cuidar das nossas mulheres, filho. Don Manuel, estritamente de negro, sóbrio, como era devido, com uma gravata verde-escura com um nó enorme, assentiu por detrás da mesa de mogno que ocupava. As patilhas compridas e fartas juntavam-se ao bigode, também espesso, numa mata de pêlo impecavelmente delineada que deixava o pescoço e o queixo sem barba. Elas precisam de nós. Fazes bem. Esses anarquistas e libertários é que vão arruinar o país! Espero que a Guarda Civil se tenha esforçado com eles! Mão dura! É o que merecem todos esses ingratos! Não te preocupes, filho. Vai trabalhar. O estúdio de Dalmau confinava, porta com porta, com o do mestre. Ele também não trabalhava com os outros empregados, em salas comuns; dispunha de um espaço para si, um local bastante amplo onde podia concentrar-se no seu trabalho, que naquela altura consistia em desenhar uma série de azulejos com motivos orientais: flores-de-lótus, nenúfares, crisântemos, canas de bambu, borboletas, libélulas…

Dominar o desenho de flores custou-lhe vários cursos nos estudos que efectuou na escola da Llotja de Barcelona. As flores naturais, as flores de perfil, as flores à sombra, o desenho e, por último, a composição a óleo. Dentro das matérias que se estudavam na Llotja, aonde Dalmau ingressou aos dez anos, que incluíam aritmética, geometria, desenho figurativo, desenho linear e decorativo, desenho do natural e pintura, uma das mais importantes era a do desenho aplicado às artes e ao fabrico. Para isso foi criada a escola da Llotja, para ensinar arte aos operários que necessitavam com o objectivo de a aplicarem na indústria.

No entanto, em meados do século XIX começou a dar-se preferência às artes puras em detrimento das artes aplicadas, mas sem abandonar estas últimas, as destinadas a providenciar recursos à indústria, e entre as quais se encontrava, sem dúvida alguma, o desenho de flores. Os elementos botânicos foram o ornamento por excelência da arte gótica, e agora, devido à procura das inspirações medievais, usavam-se na decoração de tecidos e vestidos, a indústria que fazia mover a Catalunha, e, com o modernismo arquitectónico, em azulejos e revestimentos de paredes, mosaicos, forjados, marcenaria e vitrais, assim como nos milhares de esculturas de gesso que ornamentavam os edifícios». In Ildefonso Falcones, O Pintor de Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.

Cortesia de Suma/JDACT

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