De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
«(…) Enfim, desta encosta se vê
Bragança. A tarde apaga-se rapidamente, o viajante vai cansado. E, nesta
situação, padece da ansiedade de todos os viajantes que procuram abrigo. Há-de
haver um hotel, um sítio para jantar e dormir. E então que lhe aparece o sinal
cor de laranja: Pousada. Vira, contente, começa a subir o monte, e esta
paisagem é belíssima no quase lusco-fusco, até que dá com o prédio, o edifício,
a estalagem, ou lá o que é, que pousar aqui não pode apetecer a ninguém. Esta
seria a ocasião de recordar o mestre de todos nós, o Garrett, quando chega à
Azambuja e diz, por palavras suas: Corremos a apear-nos no elegante
estabelecimento que ao mesmo tempo cumula as três distintas funções de hotel,
de restaurante e de café da terra. Santo Deus!, que bruxa que está à porta!,
que antro lá dentro!… Cai-me a pena da mão. Ao viajante não caiu a pena
porque a não usa. Também não havia nenhuma velha à porta. Mas o antro era
aquele. O viajante fugiu, fugiu, até que foi dar com um hotel sem imaginação
mas bem-apessoado. Ali ficou, ali jantou e dormiu.
Um
Bagaço em Rio de Onor
Às vezes, começa-se pelo que está
mais longe. O natural seria, estando em Bragança, ver o que a cidade tem para
mostrar, e depois deitar as vistas em redor, pedra aqui, paisagem acolá,
respeitando a hierarquia dos lugares. Mas o viajante traz uma ideia fixa: ir a
Rio de Onor. Não é que da visita espere mundos e maravilhas, afinal Rio de Onor
não passa duma pequena aldeia, não constam por lá sinais de godos ou de mouros,
porém quando um homem mexe em livros colam-se-lhe à memória nomes, factos,
impressões, e tudo isto se vai elaborando e complicando até chegar, é este o
caso, às idealidades do mito. O viajante não veio fazer trabalho de etnólogo ou
de sociólogo, dele ninguém esperará supremas descobertas nem sequer outras
menores: tem apenas o legítimo e humaníssimo desejo de ver o que outras pessoas
viram, de assentar os pés onde outros pés deixaram marcas. Rio de Onor é para o
viajante como um lugar de peregrinação: de lá trouxe alguém um livro que, sendo
obra de ciência, é das mais comovedoras coisas que em Portugal se escreveram. É
essa terra que o viajante quer ver com os seus próprios olhos. Nada mais.
São trinta quilómetros de
estrada. Logo à saída de Bragança, ali adiante, está a escura e silenciosa
aldeia de Sacoias. Entra-se nela como em outro mundo. Vista a disposição das
primeiras casas, a curva que o caminho faz, dá vontade de parar e gritar: Está
alguém? Pode-se entrar? O certo é que ainda hoje o viajante não sabe se
Sacoias é habitada. A lembrança que guarda deste lugar é a de um ermo, ou,
talvez mais exactamente, de uma ausência. E esta impressão não se desfaz mesmo
quando lhe pode sobrepor uma outra imagem, quando já vinha de regresso, de três
mulheres dispostas de maneira teatral nos degraus duma escada, ouvindo o que, inaudivelmente
para o viajante, outra lhes dizia, enquanto suspendia a mão sobre um vaso de
flores. Tão parecido isto é com um sonho que o viajante, afinal, chega a
suspeitar que nunca esteve em Sacoias.
O caminho para Rio de Onor é um
deserto. Ficam por aqui umas aldeias: Baçal, Varge, Aveleda, mas sai-se delas e
é o mesmo que entrar no ermo primitivo. Claro que não faltam sinais de cultivo,
não é terra de mato ou pedraria bruta, porém não se vêem aquelas casas
dispersas que noutras regiões se encontram e vão servindo de companhia a quem
viaja. Aqui pode-se imaginar o princípio de qualquer coisa.
O
viajante olha o mapa: se esta curva de nível não engana, é altura de começar a
descer. À direita fica um largo e extenso vale, logo abaixo vê-se uma fiada de
colmeias, e, confusamente, entre a bruma delgada, andam ao longe homens a
trabalhar. As terras são verdes e as cortinas das árvores parecem negras. Pela
estrada, empatando o caminho, sobe uma vacada. O viajante pára, deixa passar o
gado, dá os bons-dias ao guardador, que é rapaz novo e tranquilo. Parece não
pôr grande empenho no seu ofício de pastor, o que deve ser alta habilidade sua:
pelo menos, as vacas vão-se comportando como se as rodeasse uma legião de
vigilantes». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora,
Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,