terça-feira, 8 de novembro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «… afinal Rio de Onor não passa duma pequena aldeia, não constam por lá sinais de godos ou de mouros…»

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

«(…) Enfim, desta encosta se vê Bragança. A tarde apaga-se rapidamente, o viajante vai cansado. E, nesta situação, padece da ansiedade de todos os viajantes que procuram abrigo. Há-de haver um hotel, um sítio para jantar e dormir. E então que lhe aparece o sinal cor de laranja: Pousada. Vira, contente, começa a subir o monte, e esta paisagem é belíssima no quase lusco-fusco, até que dá com o prédio, o edifício, a estalagem, ou lá o que é, que pousar aqui não pode apetecer a ninguém. Esta seria a ocasião de recordar o mestre de todos nós, o Garrett, quando chega à Azambuja e diz, por palavras suas: Corremos a apear-nos no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumula as três distintas funções de hotel, de restaurante e de café da terra. Santo Deus!, que bruxa que está à porta!, que antro lá dentro!… Cai-me a pena da mão. Ao viajante não caiu a pena porque a não usa. Também não havia nenhuma velha à porta. Mas o antro era aquele. O viajante fugiu, fugiu, até que foi dar com um hotel sem imaginação mas bem-apessoado. Ali ficou, ali jantou e dormiu.

Um Bagaço em Rio de Onor

Às vezes, começa-se pelo que está mais longe. O natural seria, estando em Bragança, ver o que a cidade tem para mostrar, e depois deitar as vistas em redor, pedra aqui, paisagem acolá, respeitando a hierarquia dos lugares. Mas o viajante traz uma ideia fixa: ir a Rio de Onor. Não é que da visita espere mundos e maravilhas, afinal Rio de Onor não passa duma pequena aldeia, não constam por lá sinais de godos ou de mouros, porém quando um homem mexe em livros colam-se-lhe à memória nomes, factos, impressões, e tudo isto se vai elaborando e complicando até chegar, é este o caso, às idealidades do mito. O viajante não veio fazer trabalho de etnólogo ou de sociólogo, dele ninguém esperará supremas descobertas nem sequer outras menores: tem apenas o legítimo e humaníssimo desejo de ver o que outras pessoas viram, de assentar os pés onde outros pés deixaram marcas. Rio de Onor é para o viajante como um lugar de peregrinação: de lá trouxe alguém um livro que, sendo obra de ciência, é das mais comovedoras coisas que em Portugal se escreveram. É essa terra que o viajante quer ver com os seus próprios olhos. Nada mais.

São trinta quilómetros de estrada. Logo à saída de Bragança, ali adiante, está a escura e silenciosa aldeia de Sacoias. Entra-se nela como em outro mundo. Vista a disposição das primeiras casas, a curva que o caminho faz, dá vontade de parar e gritar: Está alguém? Pode-se entrar? O certo é que ainda hoje o viajante não sabe se Sacoias é habitada. A lembrança que guarda deste lugar é a de um ermo, ou, talvez mais exactamente, de uma ausência. E esta impressão não se desfaz mesmo quando lhe pode sobrepor uma outra imagem, quando já vinha de regresso, de três mulheres dispostas de maneira teatral nos degraus duma escada, ouvindo o que, inaudivelmente para o viajante, outra lhes dizia, enquanto suspendia a mão sobre um vaso de flores. Tão parecido isto é com um sonho que o viajante, afinal, chega a suspeitar que nunca esteve em Sacoias.

O caminho para Rio de Onor é um deserto. Ficam por aqui umas aldeias: Baçal, Varge, Aveleda, mas sai-se delas e é o mesmo que entrar no ermo primitivo. Claro que não faltam sinais de cultivo, não é terra de mato ou pedraria bruta, porém não se vêem aquelas casas dispersas que noutras regiões se encontram e vão servindo de companhia a quem viaja. Aqui pode-se imaginar o princípio de qualquer coisa.

O viajante olha o mapa: se esta curva de nível não engana, é altura de começar a descer. À direita fica um largo e extenso vale, logo abaixo vê-se uma fiada de colmeias, e, confusamente, entre a bruma delgada, andam ao longe homens a trabalhar. As terras são verdes e as cortinas das árvores parecem negras. Pela estrada, empatando o caminho, sobe uma vacada. O viajante pára, deixa passar o gado, dá os bons-dias ao guardador, que é rapaz novo e tranquilo. Parece não pôr grande empenho no seu ofício de pastor, o que deve ser alta habilidade sua: pelo menos, as vacas vão-se comportando como se as rodeasse uma legião de vigilantes». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,