quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O Pintor de Almas. Ildefonso Falcones. «Era compreensível para quem conhecesse a mulher de don Manuel, zombava Dalmau às escondidas. Burguesa, reaccionária, conservadora, católica recalcitrante (até à medula!)»

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Barcelona. Maio de 1901

«(…) Emma e Montserrat, transpiradas, com o rosto sujo e enegrecido devido ao pó que se levantou com a queda do vagão, saltavam excitadas, instigavam as companheiras e erguiam os braços empoleiradas no eléctrico.

Dalmau sentiu os pêlos do corpo a eriçarem-se ao ver aquelas duas jovens mulheres. Valentes! Empenhadas! Recordou as vezes em que, juntamente com as mães e as mulheres dos operários, se precipitaram para a rua em defesa de uma causa. Dalmau não chegava a ser dois anos mais velho do que elas e, apesar disso, aquelas duas jovens, como se o facto de serem mulheres a tal as obrigasse, superavam-no em ousadia e gritavam, insultavam e, inclusivamente, desafiavam a Guarda Civil. E agora estavam ali, em cima de um eléctrico que tinham acabado de derrubar com as mãos. Dalmau estremeceu, depois ergueu o punho e, excitado, juntou-se aos gritos e reivindicações da populaça.

A emoção e o estrondo ainda continuavam a ecoar no íntimo de Dalmau, agitando-o, ensurdecendo-o, enquanto subia o Paseo de Gràcia de Barcelona em direcção à fábrica de cerâmica onde trabalhava, situada em Les Corts, num descampado junto à ribeira de Bargalló. Não chegou a ter oportunidade de falar com as duas jovens pois, assim que conseguiram o seu objectivo, o nervosismo demonstrado pela Guarda Civil forçou a dissolução do piquete e fez com que as mulheres e os filhos dispersassem em todas as direcções. Talvez Montserrat e Emma fossem reconhecíveis, pensou Dalmau. Com toda a certeza, disse para si, e sorriu ao mesmo tempo que dava um pontapé na folha caída de uma árvore. Quem podia esquecê-las ali de pé, em cima do eléctrico? No entanto, confundiram-se rapidamente com as outras que se encontravam no mercado da Boqueria ou nas Ramblas: mulheres como tantas outras, vestidas com saia comprida até aos artelhos, avental e camisa, de um modo geral com as mangas arregaçadas. As mais velhas costumavam ter a cabeça coberta com um lenço, em geral negro; as outras apanhavam o cabelo num carrapito, sem chapéu. Eram mulheres radicalmente diferentes das que se podiam ver a deambular pelo Paseo de Gràcia, ricas e elegantes.

Todos os dias, quando ia ou vinha por aquela grande artéria da Cidade Condal, Dalmau entretinha-se a contemplar as senhoras que passeavam, orgulhosas, por entre amas vestidas de branco com os seus bebés, cavalos e carruagens. O peito, o ventre e as nádegas; diziam que esses eram os três padrões pelos quais se devia julgar a mulher ideal. A moda feminina tinha evoluído com o modernismo, tal como a arquitectura e as outras artes, e foi substituindo as peças medievais, rígidas, usadas durante a última década do século anterior, por outras que revelavam mulheres vivas, com os corpetes a realçarem as formas naturais dos corpos numa espécie de serpentear maravilhoso: seios espetados; ventres planos, comprimidos, e atrás as nádegas, empinadas, como se estivessem dispostas a atacar a qualquer momento. Quando tinha tempo, Dalmau sentava-se num dos bancos do Paseo e fazia esboços a lápis daquelas mulheres, embora na sua imaginação costumasse evitar a vestimenta e as desenhasse nuas. Não queria limitar-se àquilo que os corpetes e os vestidos insinuavam. Os pés, as pernas, os tornozelos, sobretudo os tornozelos, finos e magros, com os tendões tensos como cordas; mãos e braços. E os pescoços! Porquê reparar só naqueles três critérios: peito, ventre e nádegas? Gostava do nu feminino, mas infelizmente não tinha oportunidade de trabalhar com modelos despojadas de roupa; o seu mestre, don Manuel Bello, proibira-o. Nus masculinos, sim; femininos, não. Se ele não o fazia, contrapunha o mestre, não seria Dalmau a fazê-lo. Era compreensível para quem conhecesse a mulher de don Manuel, zombava Dalmau às escondidas. Burguesa, reaccionária, conservadora, católica recalcitrante (até à medula!), virtudes estas que partilhava com o marido, a mulher agarrava-se à moda velha, abandonada há alguns anos, e ainda usava a crinolina, uma espécie de armação que se atava à cintura para que a saia ficasse bojuda atrás.

Tal qual um caracol!, troçava, quando explicava a Montserrat e a Emma. Tudo para a frente e uma espécie de carapaça que lhe sai do rabo e que carrega aonde quer que vá. Acreditam que sou incapaz de a imaginar nua? As duas riram. Nunca tiraste a carapaça a um caracol?, perguntou-lhe a irmã. Pois pões um pouco de cabelo a essa lesma em vez dos cornichos e aí tens a tua burguesa nua, babando-se como todas elas». In Ildefonso Falcones, O Pintor de Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.

Cortesia de Suma/JDACT

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