História do Soldado José Jorge
«(…) Está vista Bragança? Não
está. Mais não se peça, porém, ao viajante, que tem outras terras a ver, como
esta capazes de reter um homem para o resto da vida, não por particulares
merecimentos, mas porque é essa a tentação das terras. E quando se diz para o
resto da vida, diz-se também para além dela, como é o caso do soldado José
Jorge, que vai contar-se. Antes se diga, para entendimento completo, que o
viajante tem um gosto, provavelmente considerado mórbido por gente que se gabe
de normal e habitual, e que é, dando-lhe a gana ou a disposição de espírito, ir
visitar os cemitérios, apreciar a encenação mortuária das memórias, estátuas,
lápides e outras comemorações e de tudo isto tirar a conclusão de que o homem é
vaidoso mesmo quando já não tem nenhuma razão para continuar a sê-lo. Calhou
estar o dia propício a estas reflexões, e quis o acaso que os passos vagabundos
do viajante o encaminhassem ao lugar onde elas mais se justificam. Entrou,
circulou pelas ruas varridas e frescas, ia lendo as inscrições cobertas pelos
líquenes e roídas pelo tempo, e dando a volta inteira foi dar com uma campa
rasa, isolada das pompas da congregação dos falecidos, na qual campa, rodeada
por um berço, estava um dístico que assim rezava: Aqui Jaz José Jorge Foi Sentenciado
à Morte em 3 de Abril de 1843. O caso era intrigante. Que morto célebre era
este, com lugar marcado e ocupado há quase cento e quarenta anos, posto aqui ao
pé do muro, mas não ao abandono, como se vê pelas letras pintadas de fresco, nítido
branco sobre preto retinto? Alguém há-de saber. Mesmo ali ao lado estava a
barraca do coveiro, e o coveiro lá dentro. Diz o viajante: Boas tardes. Pode
dar-me uma informação? O coveiro, que estivera conversando com uma
mulherzinha naquele suave tom transmontano, levanta-se do banco e põe-se às
ordens: Se eu souber. Sabe, com certeza, é pergunta do ofício, parecia mal que
não respondesse: Aquele José Jorge ali, quem era? O coveiro encolhe os
ombros, sorri: Ah, isso é uma história muito antiga. Que o seja, não é novidade
para o viajante, que bem viu a data. Prossegue o cavador desta vinha: Conta-se
que era um soldado que viveu naquela época. Um dia um amigo pediu-lhe a farda
emprestada, sem dizer para quê, mas eram amigos, e o soldado nem perguntou, o
caso é que mais tarde apareceu uma rapariga morta e toda a gente começou a
dizer que a tinha morto um soldado e que esse soldado era o José Jorge. Parece que
o fardamento tinha ficado sujo de sangue, o José Jorge não conseguia explicar,
ou não queria, por que tinha emprestado a farda. Mas se dissesse que a tinha
emprestado, salvava a vida, diz o viajante, que se gaba de espírito lógico.
Respondeu o coveiro: Isso não sei. Só sei o que me contaram, é uma história que
já vem do meu avô, e do avô dele. Calou-se o José Jorge, o amigo não se
apresentou, ruim amigo era, e o José Jorge foi enforcado e depois enterrado
naquele sítio. Aqui há muitos anos quiseram levantar a campa, mas deram com
o corpo em perfeito estado, tornaram a tapar, e nunca mais se lhe mexeu.
Perguntou o viajante: E quem é que lhe
vai pintando aquelas letras tão bem-feitinhas? Isso sou eu, respondeu o
coveiro.
O
viajante agradeceu a informação e retirou-se. Recomeçara a chover. Ficou um
momento parado à beira da grade, a pensar: Por que foi que nasceu este homem?
Por que foi que morreu? O viajante tem muito destas perguntas sem resposta.
Depois, confusamente, pensa que talvez tivesse gostado de ter conhecido este
soldado José Jorge, tão confiante e calado, tão amigo do seu amigo, e enfim
reconhece que há milagres e outras justiças, mesmo póstumas e de nenhum
proveito, como esta de estar incorrupto cento e quarenta anos depois. Sai o
viajante do cemitério, agarrado ao guarda-chuva, e desce para o centro da
cidade, imaginando onde teria sido o local da forca, se aqui na praça
principal, ou na cerca do castelo, ou nestes arrabaldes, e a cerimónia da execução,
os tambores rufando, o pobre de mãos atadas e cabeça baixa, enquanto em Rio de
Onor uma mulher estaria dando à luz uma criança e na igreja de Sacoias o padre
baptizava outra. À noite o viajante foi visitar uns amigos e ficou até tarde.
Quando saiu, enganou-se no caminho e foi dar à estrada de Chaves. Continuava a
chover». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora,
Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,