sábado, 2 de junho de 2018

A Bruxa do Monte Córdova. Camilo Castelo Branco. «Porque ela, a querida do juiz ordinário, do alferes de milícias, do juiz dos órfãos, do boticário, do capitão-mor, do escrivão das sisas, do mestre-escola... Amava... Um frade bento!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Estava mal informado o tio Joaquim da Teresa, no artigo confissão. Angélica Florinda não exercitava tão louváveis espiritualidades. Às festas ia; mas, fora da quaresma e jubileus, a rapariga parece que andava armazenando fazenda pecaminosa que assoalhasse no confessionário. Angélica do picoto, imitante a qualquer donzela das que pisam tapetes e têm segredos com a lua, sentia no íntimo peito uma tristeza alegre e uma alegria triste, um bem de que padecia e um mal que a consolava, enfim, um mal que a recreava e um bem que a afligia: tudo isto cifra na saudade, como S. Bernardo a definiu, e depois do santo muitos à semelhança dele, salvante a santidade. A saudade de Angélica tinha sete anos de coração, enraizara-se, era dor sem esperança de remédio.
Quem no diria, vendo-a florir, nutrir, folgar honestamente? Pois violentava-se a jovem. A natureza aformosentava-a, de força e contra vontade dela; as cores salubérrimas eram dotes da juvenil matéria que não tinha satisfações que dar à alma; folgava-se com as suas amigas, cantando o S. João ou outras cantilenas assim místicas, é que a briosa rapariga forcejava por esconder a sua mágoa dos outros e de si, delindo-a da lembrança. A saudade, pois, de Angélica Florinda devia de ser ruim, que assim lhe dava pejo de que lha soubessem. Ai!, se era! Ainda que deus lha perdoasse, e mandasse anjos a publicar na terra o indulto da pecadora, o mundo não lhe perdoaria. Porque ela, a querida do juiz ordinário, do alferes de milícias, do juiz dos órfãos, do boticário, do capitão-mor, do escrivão das sisas, do mestre-escola... Amava... Um frade bento!
Mas este frade não era algum dos dois que andavam perdidos por ela. Era um terceiro frade de S. Miguel de refojos. Três! Que muito, se seria natural amá-la o convento todo! Amá-la toda a congregação de S. Bento! Amarem-na S. Pacómio, S. António abade, S. Jerónimo, o escarnado velho que vencia a custo as voluptuárias lembranças das romanas! Aquilo era mulher de prova! Não conhecia o diabo semelhante tipo, quando o senhor lhe permitiu atanazar o inquebrantável Job. Era mostrar-lhe a rapariga... E dispensá-lo da lepra. Era dar-lhe umas comichões de alma que não se coçam com telha, o diabo, além de mau, é tolo, e às vezes velho parvo, Camões, o sábio Francisco Manuel de meio, e primeiro que ele António Sousa Macedo, e mais antigo Isidoro Barreira, e mais ainda Manuel Severim Faria, e mais velho que todos Duarte Nunes Leão. Parei neste, prometendo esquadrinhar quem ensinou Duarte Nunes. Ultimamente encontrei S. Bernardo. Mais tarde, se deus quiser, direi onde o santo abade da Claraval achou a galantaria, que se me antolha ser antediluviana.
Como lhe chama frei João Ceita. Anda tanta gente a querer perder-se e infernar-se com as mulheres de certo feitio, e o parvo a dormir, e elas a fugirem da tentação! Entendam-no lá! Há uma só explicação que o salva e abona; e é que modernamente os vícios são tantos, em comparação dos antigos, que hoje em dia alguns dão mais trabalho a conseguir que propriamente as virtudes opostas. Conservando-se satanás neutral, a honestidade é a mais barata das granjearias. Bem no dizem os filósofos: a mulher emancipou-se. A formosa, creio que sim. As outras, duvido. Figura-se-me que ainda colabora com elas coisa de tentação que as ala ao fastígio donde formosas e feias se despenham. O discrime está em que umas avoejam lá com asas do céu, outras vão de gatinhas ou às cavaleiras do diabo». In Camilo Castelo Branco, A Bruxa do Monte Córdova, 1867, Projecto Livro Livre, Nº 212, Poeteiro Editor, 2014.

Cortesia de PLLivre/JDACT

Cortesia de PLLivre/JDACT