«(…) O velho não se dignou responder
ao criado. Com o grupinho expectante, quebrou os lacres em silêncio e desdobrou
um papel cheio de goma. Leu, e eles viram-no soltar um suspiro de desapontamento.
Voltar a Roma, não! Pediu Freize, que não aguentava nem mais um momento de espera.
Diga-me que não temos de dar meia volta e regressar à vida antiga! Freize viu o
olhar divertido de Ishraq. A inquirição é um dever difícil, corrigiu-se ele a tempo,
mas eu não quero deixá-la incompleta. Tenho o sentido do dever, das minhas obrigações.
Tu preferes qualquer coisa a voltar ao mosteiro e a ser moço de cozinha, disse
ela, e não se enganava. Tal como eu prefiro estar aqui a servir de aia num castelo
isolado. Pelo menos, estamos livres, e a cada dia acordamos a saber que qualquer
coisa pode acontecer. Devo lembrar-lhes de que não viajamos por lazer, disse o irmão
Peter, muito severo, sem ligar nenhuma aos comentários deles. Temos ordens para
rumarmos à vila piscatória de Piccolo, de passarmos o mar até Split e de avançarmos
para Zagreb. Depois tomamos o caminho dos romeiros até às capelas de São Jorge
e São Martinho, na igreja de Nossa Senhora nos arredores de Zagreb. Isolde
soltou uma exclamação abafada.
Zagreb! Um pequeno gesto de Luca
a estender a mão para ela, e depois a recolhê-la logo, pois lembrara-se de que
não lhe devia tocar, denunciou-o também. Viajamos no caminho da Isolde, disse ele,
a alegria na voz evidente para todos. Podemos continuar juntos. A centelha de
concordância nos olhos azuis-escuros dela passou despercebida ao irmão Peter, absorto
com as novas ordens. Devemos inquirir pelo caminho de tudo o que pareça fora do
comum, leu ele. Devemos parar e montar inquirição se encontrarmos algo que indique
obras de Satanás, surgimento de medos do desconhecido, provas da maldade dos homens,
ou do fim dos tempos. Ele parou de ler e dobrou a carta oulra vez, a mirar os quatro
jovens. Assim parece que, portanto, sendo Zagreb a caminho de Budapeste, e dado
as senhoras insistirem terem de ir a Budapeste procurar o conde Ladislau, é o próprio
Deus a ditar que viajemos na mesma estrada que estas jovens senhoras.
Isolde já se tinha recomposto
quando o irmão Peter finalmente a contemplou. Continuou de olhos baixos, com o cuidado
de não mirar Luca. Claro que ficaríamos gratas pela vossa companhia, disse ela
com timidez. Mas trata-se de um caminho de romeiros. Não faltará quem siga o mesmo
rumo. Podemos ficar com outras pessoas, não é preciso sermos fardo vosso. O
rosto rejubilante de Luca indicava-lhe que ela não era fardo nenhum, mas o irmão
Peter retorquiu, antes que mais alguém pudesse fa1ar. Certamente. O meu conselho
é que, assim que encontrarem um grupo de senhoras com destino a Budapeste, se juntem
a elas. Nós não podemos ser guias e guardiães vossos. Estamos ao serviço de uma
grande missão; e as senhoras são jovens: por mais que tentem conduzir-se com
modéstia, não podem evitar ser uma distracção e um desvio. Salvaram-nos o rancho em Vittorito, observou
Freize em voz baixa, e apontou com a cabeça para Ishraq. Ela sabe lutar e disparar
uma flecha, e também sabe de curativos. Custa a encontrar alguém mais útil para
companheiro de viagem. Custa a encontrar melhor camarada numa jornada perigosa.
Claramente distracções, repetiu o
irmão Peter severamente. Como já disseram, elas deixam-nos quando encontrarem um
grupo adequado, decretou Luca. O encanto por ficar na companhia de Isolde mais uma
noite, e outra depois dessa, mesmo que fossem apenas mais algumas noites, era evidente
para todos, especialmente para ela. Os olhos azuis-escuros de Isolde encontraram
os olhos cor de avelã dele num olhar longo e silencioso. Nem sequer perguntas o
que temos de fazer no recinto sagrado? Indagou o irmão Peter em tom de censura.
Nas capelas? Nem sequer queres saber que há relatos de heresia que temos de descobrir?
Com certeza que sim, disse Luca rapidamente. Deves dizer-me o que temos de ver.
Eu estudarei. Terei de reflectir nisso. E criarei uma inquirição completa, e tu
escreverás o relato a enviar ao mestre da nossa ordem, para o Papa ver. Faremos
a nossa incumbência, como mandou o nosso mestre, o Papa e o próprio Deus. Melhor
ainda, podemos comer um bom jantar em Piccolo, salientou Freize alegremente, a mirar
o sol poente. E amanhã de manhã teremos tempo de nos ralarmos com o barco que
nos levará à Croácia». In Philippa Gregory, Filhas da Tempestade, 2013,
Topseller, 20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-849-173-2.
Cortesia de Topseller/20/20E/JDACT