quinta-feira, 7 de junho de 2018

A Religiosa. Denis Diderot. «Uma vez casadas as minhas duas irmãs, acreditei que pensariam em mim e que não tardaria a sair do convento. Tinha, então, dezasseis anos e meio»

Cortesia de wikipedia

«A resposta do senhor marquês de Croismare, se é que me dá alguma, é que irá proporcionar as primeiras linhas deste relato. Antes de lhe escrever quis conhecê-lo. É um homem mundano, ilustrado, já entrado nos anos, foi casado e tem uma filha e dois filhos a quem ama e que o amam. Pertence a uma nobre linhagem, é inteligente, talentoso, alegre, gosta das belas-artes e, sobretudo, é original. Elogiaram-me a sua sensibilidade, a sua honra e a sua honestidade; e eu creio, pelo vivo interesse que manifestou pelo meu assunto e por tudo o que me contaram sobre ele, que não me enganei ao dirigir-me à sua pessoa. Mas não posso presumir que se decida a mudar a minha sorte sem saber quem eu sou, e é por este motivo que estou resolvida a vencer o meu amor-próprio e a minha repugnância iniciando estas Memórias, nas quais, sem talento nem arte, com a ingenuidade de uma criança da minha idade e a franqueza do meu carácter, descrevo parte das minhas desgraças. Como o meu protector poderia exigir, mas ou, quem sabe, a minha fantasia far-me-ia acabá-las quando certos feitos longínquos já não estivessem presentes na minha memória, e creio que o resultado final e a profunda impressão que me deixaram, enquanto for viva, bastarão para que os recorde com exactidão.
Meu pai era advogado. Desposara a minha mãe em idade bastante avançada; desse casamento teve três filhas. Tinha uma fortuna mais do que suficiente para as casar bem, mas, para isso, era preciso que, no mínimo, a sua ternura fosse igualmente repartida; e é-lhe indiferente que eu lha elogie ou não. É certo que eu valia mais do que as minhas irmãs, pelos atractivos espirituais e físicos, de carácter e artísticos. E parecia que os meus pais se aborreciam com isso. A vantagem que sobre elas a natureza e o zelo me tinham concedido tornava-se para mim uma fonte de desgostos para ser amada, querida, festejada, desculpada sempre como elas o eram; desde muito nova desejei assemelhar-me a elas. Se acontecia dizerem à minha mãe: tem umas filhas encantadoras..., isso nunca era extensível a mim. Por vezes sentia-me vingada dessa injustiça; mas os elogios que recebera custavam-me tão caro quando estávamos sós que eu teria preferido de longe a indiferença, ou mesmo injúrias; quanto mais os estranhos me distinguiam com a sua predilecção, mais mau humor se instalava quando partiam. Oh! Quantas vezes chorei por não ter nascido feia, estúpida, pateta, arrogante, numa palavra, com todos os defeitos com que triunfavam perante os nossos pais! Interroguei-me sobre a origem desta singularidade num pai e numa mãe aliás honestos, justos e piedosos. Confessar-lho-ei, senhor? Algumas circunstâncias reunidas em diferentes momentos, as falas dos vizinhos, as conversas dos criados, faziam-me desconfiar de uma razão que os poderia desculpar um pouco. Talvez o meu pai tivesse alguma dúvida acerca do meu nascimento; talvez eu recordasse à minha mãe uma falta cometida e a ingratidão de um homem a quem ela teria dado ouvidos em demasia; que sei eu? Mas quando estas suspeitas não fossem fundamentadas que arriscava eu em vo-las confiar? O senhor queimará este escrito, eu prometo-lhe queimar as suas respostas.
Como entre nós havia pouca diferença de idade, tornámo-nos adultas ao mesmo tempo. Começaram a aparecer os pretendentes. Um jovem muito agradável cortejava a minha irmã mais velha, mas eu compreendi que era a mim que ele preferia e ela não passava de um pretexto incessante para a sua assiduidade. Pressenti quantas penas podiam acarretar-me as suas atenções e adverti a minha mãe sobre isso. Acaso tenha sido a única coisa grata que aos olhos dela fiz em toda a minha vida, eis aqui a recompensa: quatro dias depois, pouco mais ou menos, disseram-me que tinham pedido um lugar, para mim, num convento, e para lá me levaram no dia seguinte. Sentia-me tão mal na minha casa que este acontecimento não me afligiu em absoluto; fui para Santa Maria, o meu primeiro convento, com grande júbilo. Entretanto, o pretendente da minha irmã, como não voltasse a ver-me, esqueceu-me e tornou-se seu marido. Chama-se M. K. é notário e vive em Corbeil; o casal não se relaciona muito bem. A minha segunda irmã casou-se com um tal Bauchon, comerciante de sedas em Paris, na rua Quincampoix, e vive feliz.
Uma vez casadas as minhas duas irmãs, acreditei que pensariam em mim e que não tardaria a sair do convento. Tinha, então, dezasseis anos e meio. As minhas irmãs receberam dotes consideráveis; eu sonhava para mim uma sorte igual e tinha a cabeça cheia de projectos quando me chamaram ao locutório. Era o padre Serafim, director espiritual da minha mãe e que também tinha sido o meu; sendo assim, não teve dificuldades em explicar-me o motivo da sua visita: tratava-se de me convencer a tomar o hábito. Rebelei-me contra esta estranha proposta e disse-lhe, francamente, que não sentia nenhuma inclinação para a vida religiosa. Pouca sorte, disse-me ele, pois os seus pais desfizeram-se de tudo em benefício das suas irmãs, enão vejo o que poderão fazer por si na apertada situação a que se vêem reduzidos. Reflicta, menina. Ou entra para sempre nesta casa ou vai para um convento de província onde aceitem recebê-la por uma módica pensão e de onde só sairá após a morte de seus pais, o que pode demorar muito. Queixei-me com amargura e verti uma torrente de lágrimas. A superiora estava prevenida e esperava-me à saída do locutório. Eu sentia uma confusão indescritível. Disse-me. O que é que se passa, querida filha? (ela sabia melhor do que eu o que é que se passava). Que estado o seu! Nunca vi um desespero assim, faz-me medo! Perdeu o seu pai ou a sua mãe?. Pensei atirar-me nos seus braços e responder-lhe: se Deus quisesse!... Mas contentei-me com gritar: Ai! Não tenho pai nem mãe, sou muito desgraçada, odeiam-me e querem enterrar-me viva aqui! Ela deixou passar a tormenta e esperou que eu me acalmasse. Expliquei-lhe com mais clareza o que acabavam de anunciar-me. Pareceu compadecer-se de mim, confortou-me e animou-me a não abraçar uma vida pela qual não sentia a mínima inclinação; prometeu-me pedir, solicitar, interceder por mim. Oh senhor! Quão artificiais são estas superioras de convento! Não pode imaginar. Escreveu aos meus pais, com efeito. Não ignorava as respostas que lhe dariam e comunicou-mas; só muito depois aprendi a duvidar da sua boa-fé. Entretanto, chegou ao fim o prazo que me tinham dado para me decidir e ela veio anunciar-mo com a mais fingida das tristezas.
Ao princípio, ficou em silêncio e depois disse-me algumas palavras de comiseração através das quais compreendi tudo. Então, tive outro ataque de desespero; pouco mais tenho a descrever-lhe, porque para estas mulheres a contenção é uma arte. Logo depois disse-me, creio que chorando de verdade: pois bem, minha filha, vai abandonar-nos! Querida filha, não voltaremos a ver-nos!... E outras coisas que não compreendi. Tinha-me deixado cair numa cadeira; tão depressa ficava em silêncio como soluçava, ficava imóvel ou levantava-me, procurava apoio nas paredes ou chorava contra o seu seio». In Denis Diderot, A Religiosa, 1796, tradução de J. Guinsburg, Editora Perspectiva, 2009, ISBN:978-852-730-878-6
.

Cortesia de E Perspectiva/JDACT